Uma das coisas de que Jacinto não abria mão, era ir fazer as compras dos principais itens da culinária do Boteco. Queria manter a qualidade de sua comida no mais alto nível. Alguns de seus itens eram apreciados e comentados pela sua freguesia, como o seu bolinho de bacalhau, o camarão gigante grelhado, chamarizes do Boteco, principalmente depois que foi alvo daquela reportagem do jornal e da revista especializada em gastronomia.
Duas vezes por semana, saía cedinho, de madrugada ainda, para ir lá no Mercado Municipal, que conhecia bem desde os tempos do seu supermercado. Dizia sempre, que só ali encontrava os melhores azeites e o melhor bacalhau da Noruega.
Às vezes voltava ainda cedo, a tempo de encontrar os dois filhos saindo para a Faculdade. Fernando cursava o último semestre de Administração e se formaria no final do ano. Genoveva cursava o seu primeiro ano de Psicologia. Fernando já mostrava interesse e ajudava bastante nos negócios do pai.
Sua mulher, Carmem, sempre colaborou nos afazeres do Boteco, mas ultimamente ele notava algumas mudanças no comportamento dela, principalmente depois daquela plástica que tanto fez questão de fazer.
— Bom dia, seu Jacinto, como estava o mercado hoje?
— Bom dia, dona Amália, ótimo como sempre. Trouxe bastante coisa, mande o Jesús pegar na caminhonete lá fora… agora vou subir pra descansar um pouco, ok?
— Fique tranquilo, seu Jacinto…
— Viu a Carmem por aqui?
— Vi sim, ela estava meio apressada e saiu dizendo que ia correr lá na pista da Lagoa.
— Tudo bem… e, dona Amália, veja se capricha nas coisas, hein?… é sexta, o movimento à noite vai ser grande e hoje é dia da reunião dos meus amigos…
— Eu sei, seu Jacinto. Por isso estou botando o pessoal pra trabalhar desde cedo. Agora vai descansar, pois mais tarde, vai sobrar para o senhor também…
Algum tempo depois, Carmem retorna e, embora a residência em cima do Boteco tivesse sua entrada privativa, ela resolve passar pelo bar.
— O Jacinto já voltou, dona Amália?
— Já voltou sim, foi descansar como sempre faz, saiu de madrugada…
— Também vou subir, estou cansada da corrida… precisa de algo?
— Aqui tá tudo sob controle, dona Carmem. Puxa, mas a senhora está com a saúde muito boa, pois nem está suada…
— Bondade sua, dona Amália…
O tempo fechou lá fora. Um raio clareia as vidraças e uma rajada de vento sacode as suas cortinas. Logo em seguida, chega o som surdo de um trovão vindo da direção do mar. Aquela tarde seria de tempestade.
Mas, a noite chegou calorenta. A atmosfera, agora limpa, até permitia enxergar algumas estrelas a mais. O que restara da tempestade era aquela brisa suave, trazendo o cheiro de mato das florestas da mata atlântica.
Genoveva, como sempre fazia, circulava simpática por entre as mesas, coordenando o serviço dos garçons e das garçonetes. Procurava sempre memorizar o nome dos fregueses mais assíduos e fazia questão de chamá-los pelos nomes.
Beto, Alemão e Henrique chegam, conversando animadamente e vão cumprimentar Jacinto no balcão, notando que o amigo se mostrava um tanto pensativo, como nunca o viram antes.
— Boa noite, Jacinto… aconteceu algo?… está filosofando?
Ao vê-los, ele se transforma e abre um sorriso satisfeito…
— Que nada, pessoal, estava aguardando vocês mesmo, pois hoje quero tomar uns copinhos deste chope que está bom demais…
E vai saindo do balcão.
— Ô Fernando, assuma aqui, eu estou indo lá pra nossa mesa cativa.
— Deixa comigo, pai.
— Mas, que você estava meio pensativo estava…
— Deixa pra lá, Carlão, quero me divertir agora…
— Então, deixa comigo, pois vou te contar uma que te alegrará um pouco…
No caminho, Jacinto acena para um dos garçons.
— Felipe, puxe as cortinas e escancare aquelas duas janelas ali, por favor. Diz apontando.
Um mormaço quente invade as janelas e aguça ainda mais a vontade de tomar aquele chope.
— Jacinto, se continuar esse bafo quente aí de fora, melhor deixar no ar-condicionado mesmo.
A mesa se completa com a chegada dos outros e as conversas se desenrolam na euforia de sempre.
— Mas, Carlão, você não ia me contar uma anedota?
— Não é anedota nenhuma, Jacinto, é um fato que aconteceu na casa do Japa, ontem…
— Ah, foi o aniversário da Ivonete, eu avisei que não poderia ir…
— Então… estávamos todos tomando umas cervejinhas e o papo enveredou para a ficção científica, pois você sabe muito bem que o Japa tem veia literária e gosta de escrever histórias…
— Sim, até aí, tudo normal…
— Sim, Jacinto, mas é que ele, então, começou a se estender num assunto que estava pesquisando para desenvolver na história que está escrevendo… e, como sempre, era uma ficção científica.
— Pôxa, não estou vendo nada demais nisso…
— Foi quando ele começou a explicar a pesquisa que fazia sobre “organóides”… já ouviu falar?
— Nunca!
— São pesquisas da ciência que procuram desenvolver órgãos para o corpo, a partir do cultivo de células tronco…
— E daí, Carlão…
— E daí que nós já tínhamos tomado algumas cervejinhas e nossa turma tem alguns gozadores, não é?…e o Henrique pergunta:
— Então Japa… pelo que diz… um dia… no futuro. Vão fazer olhos, rins, pulmão, coração ou qualquer outro órgão para implantar em nosso corpo?
— É quase certo que aconteça sim, Henrique. A ciência poderá substituir os órgãos das pessoas, prolongando suas vidas… mas… isso ainda é ficção.
— Foi quando o Alemão largou essa…
— Vocês todos sabem que eu sofro de hemorroidas, certo?
Dava para imaginar o que estava por vir.
— Certo, e aí Alemão?
— Ora, se isso existir, então vou querer trocar o meu “fiofó” por outro novinho!!…
— E o bonachão do Ítalo não deixou barato.
— Ah, claro, Alemão, vão existir lojas com vitrines cheias de “fiofós”, de vários modelos, mas o preço será absurdo… e logo os vendedores vão ter que falar para os fregueses… ah, olha… mas temos outros de segunda linha, com pouco uso, mais baratos, porém, sem garantia nenhuma…
— Aí o Beto contribuiu pra desandar a coisa toda e todo mundo cair na gargalhada.
— Oba!!! então eu vou mandar a minha mulher nessa loja e trocar a …
— Cala a boca, Beto!!… Não estamos no Boteco agora cara…
Nessa altura, as mulheres já estavam vindo perguntar por que estávamos rindo tanto…
Jacinto não se continha e gargalhava ao lado de Carlão.
— Essa foi boa, Carlão… .então vou começar a pensar seriamente em trocar o meu bil…
Carlão põe o dedo indicador na boca.
— Aqui é um lugar de respeito, Jacinto, contenha-se!
FIM