Poderá o Homem algum dia tornar-se tão dependente das facilidades e comodidades oferecidas pela ciência moderna a ponto de perder suas habilidades mais simples como a de falar?
Esta história nos remete a um futuro imaginário, onde Sarah convive em dois mundos inversos, o do seu avô Antônio, um rebelde que resiste a entregar-se à tecnologia moderna, arriscando-se a tornar-se um “clandestino” e o seu, onde já se tornou possível viver, trabalhar, conviver em sociedade sem praticamente proferir nenhuma palavra!
Qual será o destino reservado a essa sociedade que ao longo dos anos foi entregando todas as suas habilidades em troca das facilidades cada vez mais atraentes?
De forma crescente a interação das pessoas com os aparelhos celulares e o seu uso indiscriminado generalizou-se no mesmo padrão de uma pandemia.
As pesquisas avançadas das grandes Corporações lançavam incessantemente no mercado em velocidade cada vez maior, todo tipo de “aplicativos”. Passam dos milhares. Auxílio às coisas mais simples como localizar um endereço, consultar condições meteorológicas, acessar a programação de toda a mídia, chamar um táxi, efetuar pagamentos e até fazer um determinado regime, tudo estava ali facilitado. O que comer, o que beber, que exercícios praticar. Tinha-se “aplicativos” para tudo, ou quase tudo.
As grandes Corporações não paravam de praticar todo tipo de aperfeiçoamentos. Novas e novas gerações de aparelhos nasciam, capazes de armazenar cada vez mais um número maior de “aplicativos”.
Eis-nos agora, numa radiosa manhã de fevereiro no auge do verão do ano dois mil e quarenta e seis. Com grande alarido, a “HUASHAN” o maior conglomerado de empresas do mundo, composto das grandes multinacionais Coreanas, Chinesas e Americanas que foram sendo incorporadas, anunciou o lançamento dos aparelhos que interagiam automaticamente uns com os outros, ou seja, “conversavam” entre si.
Isso mudou para sempre a vida das pessoas na face do Planeta.
As pessoas foram delegando aos seus aparelhos todas as suas informações pessoais, toda a sua trajetória de experiências e estes, com os dados vitais de seus possuidores, já começavam a dirigir automaticamente as suas vidas, assumindo as tarefas do cotidiano.
Ir a um restaurante, fazer a refeição qualquer que fosse, pagar e sair (com o táxi já esperando na porta), sem proferir uma única palavra, passou a ser aceito como sendo coisa normal, educada, de “bom tom”, pois mostrava que a pessoa era possuidora de aplicativos de última geração.
Bastava tão somente tê-los à mão. Possuíam todos os dados de sua vida, sabiam o que deveria comer, o que beber e em quais quantidades.
As “conversas” passaram a serem feitas pelos aplicativos e paulatinamente foram sendo deixadas pelas pessoas.
Ninguém conseguia mais sobreviver sem tais aparelhos, que agora, também se tornaram invioláveis e começaram a portar-se como se fossem o seu próprio possuidor, tomando todas as iniciativas por ele, vivendo a vida dele.
Tinham um sistema de segurança independente, próprio, que em casos de roubos, furtos, sequestros ou desastres de qualquer natureza, salvava tudo numa “nuvem” e partia para a autodestruição. Seu possuidor só precisava adquirir um novo aparelho, certamente mais aperfeiçoado e… pronto!… baixaria tudo da “nuvem” e tudo continuaria como antes.
Desde a implantação dos tradutores instantâneos, qualquer pessoa poderia circular por todo o Planeta sem se preocupar com a língua, os dialetos, os costumes, a ética e a moral de cada povo.
Os aplicativos “conversavam”, cumprindo todas as formalidades e as normas características de cada região. Cabia ao ser humano apenas, representar a mímica e as caras e bocas de cada situação.
Qualquer tipo de transporte, qualquer espécie de serviços públicos ou privados, de escolas, hospitais, tudo era controlado pelos inerentes aplicativos, que administravam desde o recebimento do seu salário, que nele era creditado, até os últimos e insignificantes pagamentos de quaisquer despesas.
O domínio dos aparelhos era praticamente total. Sobreviver nessa sociedade sem possuir o seu era impossível. Isso acabou com a geração dos “clandestinos”, como ficaram conhecidos os humanos que ainda tentavam resistir.
Inseriram-se também nos procedimentos da justiça, pois agora, como ninguém poderia viver na “clandestinidade”, bastava somente baixar da “nuvem” a vida pregressa de quem quer que fosse pego em contravenção. Não havia a possibilidade de um criminoso, destruindo seu aparelho, eliminar provas. A agilidade processual passou a ser a marca da justiça.
Era pensamento corrente, sim, pensamento, pois as palavras de há muito deixaram de ser usadas, que não havia vida fora dos aplicativos. Uma simples compra no supermercado, incluindo a lista de itens, um ingresso no teatro, uma passagem num transporte qualquer… tudo era feito por eles, imperceptivelmente, sem nenhuma interferência humana.
A luminosidade maior da metade do dia torna radiosa aquela tarde calorenta de verão. Uma passageira de meia idade, sentada numa confortável poltrona do transporte aéreo sobre trilhos, observa distraída, pela ampla janela à sua esquerda, a paisagem da cidade correr velozmente. Mal dá para ver os detalhes.
Um leve tremor em sua mão, avisa-a de que uma mensagem deve ser lida:
… “Hoje, quarta-feira, seis de fevereiro de dois mil e quarenta e seis é o aniversário de seu avô Antônio, que completa cem anos. Já me comuniquei com seu aparelho e desejei todos os votos de praxe…”
… “Um lembrete: quando você o vir, avise-o que costuma deixar seu aparelho muito tempo desligado. Isso acarreta suspeitas. Fomos feitos para permanecer o tempo todo ligados, não há desgaste nisso…”
Claro que todas essas mensagens eram trocadas em linguagem cibernética, com todas as abreviaturas, sinais gráficos, caricaturas, memes e simplificações que foram sendo adotadas ao longo dos anos. Uma linguagem, hoje, totalmente indecifrável para alguém de trinta anos atrás.
Mais um leve toque alerta-a para levantar-se e dirigir-se à porta. Deveria desembarcar na próxima parada, que se daria em quinze segundos.
… “Puxa, como fui esquecer? vovô vai fazer algumas daquelas críticas que sempre faz, com certeza…”
Devia muito aos avós. Havia convivido quase a vida toda com eles. Graduou-se, conseguiu um bom emprego no Governo. Ficara independente e separara-se deles apenas quando resolveu seguir sua vida ao lado de Abraão, o homem que escolhera para compartilhar sua existência. Sentia-se satisfeita com tudo até então, estava em plena forma e no auge de sua capacidade profissional aos quarenta e nove anos.
… “Na primeira oportunidade, vou lá conversar com o vovô…preciso praticar mais conversação e é só com ele que consigo fazer isso…ele usa ainda hoje, toda aquela antiga linguagem de trinta anos atrás, com todas as letras, pontos e vírgulas…”
Sarah notava que já começava a ter dificuldade em entender algumas coisas.
A composição faz uma parada suave, imperceptível, e abre as espaçosas portas para o desembarque dos passageiros. Sarah vai fazendo automaticamente o mesmo percurso que fazia rotineiramente. Sobe numa plataforma deslizante, em seguida acessa uma longa escada rolante que a desce até o nível inferior onde, bem próximo à saída, já a aguardava o seu transporte, que a levaria até em casa.
Tudo comandado pelos aplicativos, sem necessidade de emitir nenhuma palavra.
Aliás, pensou: … “hoje foi mais um dia em que não havia formulado nenhuma frase, nenhum som havia saído de seus lábios até agora…”
Rememora o caso em que havia trabalhado pela manhã, auxiliando um juiz, que julgava um réu que, como de praxe, havia destruído seu aparelho. Nesse caso, o seu trabalho era baixar da “nuvem” tudo o que o aparelho salvou, quando se sentiu na iminência de ser destruído. Tudo estava lá, intacto, irrefutável. O juiz só assina o documento digital com a sentença (que é automaticamente calculada), selando assim o destino do réu.
Lembrou-se que o único a emitir algum som naquele momento foi o réu, que proferiu algumas palavras incompreensíveis para ela. Pareceu-lhe ser frases daquela linguagem de antigamente, mas não tinha certeza.
O veículo vence rapidamente o percurso e encontra-se já estacionado à frente do alto edifício em que mora.
… “Abraão já deve ter chegado” …
O portão de entrada a identifica prontamente, assim como todas as portas até o saguão onde se localizam os vários ascensores que serviam os cento e oitenta andares do condomínio.
Adentra um deles que a leva célere até sua casa no septuagésimo nono andar.
Desembarca na antessala, observa seu nome e o de Abraão numa reluzente plaqueta ao lado da porta de entrada, que abre automaticamente à sua aproximação, fechando-se em seguida.
Logo avista Abraão, sentado em sua poltrona favorita, assistindo a um holograma de esportes. Como sempre fazia, dirige-se a ele, beijando-lhe a testa. Nem era necessário proferir qualquer palavra, pois os aparelhos e seus aplicativos já tinham trocado todas as informações dos seus dias, cruzado dados, esclarecido quaisquer dúvidas…
A última geração de aparelhos trazia incluso o mais avançado aplicativo com todos os recursos obtidos pela medicina até então. Tinha a capacidade de monitorar todo o metabolismo do seu possuidor, bastando somente umedecer a ponta do polegar na língua e aplicando no local indicado do aparelho.
Todos os resultados de um hemograma completo ficavam ali gravados. Caso detectasse alguma anomalia, elaborava a lista de providências que deveriam ser tomadas, como correções no tipo de alimentação, hábitos de vida etc. E a grande novidade!!… agora ele podia receitar os remédios necessários!!… sim, como um médico faria, mas sem as demoras de atendimento que ocorriam e sem a possibilidade de erros humanos.
O aplicativo comunicava-se com uma fornecedora de medicamentos (antigas farmácias) e em poucos minutos os medicamentos eram entregues no endereço.
Era o ápice da vida moderna, pregava o marketing das grandes corporações. Deixe tudo por nossa conta, nós cuidaremos de você! E as pessoas se entregavam de corpo e alma, usufruindo das facilidades oferecidas por essa “vida moderna”.
Sarah estava absorta, “folheando” no seu aparelho, as opções que ele havia listado para o jantar. Nada daquilo era o que realmente gostaria de comer, mas como sempre fazia, preferia seguir a dieta restrita do aplicativo.
Lembra-se novamente do avô. Rebelde por natureza, desde sempre avesso a tudo que era pregado pela sociedade moderna. Procurava levar a vida, sempre que possível no paralelo, desobedecendo na maior parte das vezes, tudo que era “recomendado” pelos aplicativos. Fazia questão de preparar suas próprias refeições, gostava de comer bem. Incluía itens abominados pelos aplicativos, não se importava, era assim que vinha fazendo esses anos todos e já estava completando cem anos.
… “Tenho de alertá-lo, agindo como age pode até ser considerado um “clandestino” e isso pode acarretar-lhe a privação de serviços essenciais, que são gradativamente suspensos, como castigo…”
Outra mensagem indica que deve pegar uma encomenda em sua caixa de coletas. Não se lembrava de ter encomendado nada nos últimos dias… vai até a sala e abre uma portinhola na parede ao lado da porta de entrada. Um pequeno embrulhinho de cor parda indica ser um medicamento. Abre-o.
… “Ah, é o meu contraceptivo, nem notei que já tinha terminado…”
Até nesse aspecto íntimo da vida dos casais, os aplicativos estavam introduzidos, gerindo, aconselhando, recomendando. Pois, de posse de todo o metabolismo, principalmente o da mulher, tinha todos os dados perfeitos para indicar datas adequadas para o casal. No seu caso, como havia optado por não ter filhos, o seu aplicativo encarregava-se de cuidar e alertar sobre os riscos envolvidos.
… “Puxa…ainda bem que ele providenciou isto, pois estou bem-disposta hoje a…”
Todavia, ela sabia que não dependia só dela. Os aplicativos seu e o de seu companheiro “conversariam” antes, checariam as condições e as disposições de ambos e recomendariam ou não a iniciativa. Era assim que se agia, era assim que era considerado “educado” pela sociedade.
Sarah, agora introspectiva, parada ali no meio da sala, começa a pensar em como tudo se transformou nas últimas décadas. As mudanças foram acontecendo de forma muito sutil, explorando as maiores fraquezas do ser humano, que busca sempre usufruir das benesses e das facilidades que lhe poupem qualquer esforço físico ou mental.
Começa a refletir, agora com o semblante mais sério, que todas essas “maravilhas” lançadas nestas últimas décadas foram facilitando e tirando do ombro das pessoas, atividades ou funções que elas preferiram mesmo delegar para os aplicativos.
Todavia, agora estava ficando nítido para ela, isso tinha como custo, o embotamento do cérebro humano, a diminuição gradativa da sua capacidade de análise e discernimento…
Poderia ser uma ação orquestrada? …
Ela mesma sentia, já começava a ter dificuldade em raciocinar sobre assuntos mais importantes, parecia que havia uma “trava”, depois da qual as ideias se dispersavam…
Os pensamentos fluíam, moldados pela rotina dos anos, em figuras e linguagens cibernéticas… sim! agora percebia isso… pensava e raciocinava em linguagem cibernética, não eram mais aqueles pensamentos claros, conversando consigo mesma, como os que tinha na sua juventude.
Esse era um grande motivo que dificultava exprimir em palavras o que se pensava… na realidade impedia mesmo que se falasse! Incentivava somente o uso do teclado dos aplicativos, a comunicação escrita…
… “Estou imaginando coisas… será que outros também podem estar pensando assim?” …vou conversar com o vovô, sentir o que ele acha do que penso. Ele sempre falava naquelas teorias mirabolantes mesmo…”
… “Aliás, vou lá agora mesmo. Ainda estamos no meio da tarde e o transporte para lá é rápido.”
Consulta seu aplicativo sobre a viagem e a resposta é quase imediata: veículo até o embarque no TAST, seis minutos. Deslocamento interno na plataforma, dois minutos. Tempo de duração do percurso no TAST, trinta e dois minutos. Desembarque e trânsito na plataforma, dois minutos. Veículo até a residência, quatro minutos.
Estava tudo ali, minuciosamente descrito, bastava dar um ok e o aplicativo iniciaria o seu trabalho e em quarenta e seis minutos estaria com os avós. O aplicativo havia, paralelamente, consultado também Abraão, que não manifestou desejo de acompanhá-la nessa visita.
Iria sozinha.
Seus avós residiam em um local distante agora. Lembrou-se de quanto o seu avô resistira para abandonar sua casa, quando começaram as reorganizações urbanas. Não aceitava morar naqueles condomínios enormes, verdadeiras cidades verticais.
Não lhe deram alternativa.
O Transporte Aéreo Sobre Trilhos (TAST), interligava velozmente e com o máximo conforto todos os pontos das grandes cidades, numa enorme malha. A palavra “trilhos” só é mantida em seu nome, apenas por tradição, pois há décadas não são mais utilizados. Toda a composição apoia-se em poderosos eletroímãs que a fazem “levitar” a alguns centímetros da via.
Sem nenhum som e nenhum atrito, alcança velocidades altíssimas e assim pode chegar a qualquer ponto das cidades em poucos minutos. Foi o fim dos transportes pessoais.
Sentada numa poltrona reclinável, segurando o exemplar de um livro antigo em formato impresso, coisa que não existia mais nestes tempos modernos, pensa em como foi difícil encontrá-lo. Quando o avistou em um sebento antiquário, imediatamente o adquiriu. Ele adorava esse tipo de presente.
Durante todo o trajeto não pôde deixar de pensar naquilo que já começava a preocupá-la. Tentava manter os pensamentos claros e nítidos, como antes os tinha, com coerência e nexo.
Sentia como era muito mais cômodo pensar com a superficialidade e o automatismo da linguagem cibernética. A preocupação maior era apenas interagir com o aparelho, não deixando tempo para pensar.
Um suave toque em seu pulso e a mensagem para preparar-se para o desembarque.
Um veículo a levou até o condomínio, célere como de costume, mas sempre dava para apreciar um pouco a paisagem. Por ali ainda podia ver muitas árvores, o que não havia mais em sua cidade, salvo as artificiais.
Seus avós já a aguardavam, pois, seus aplicativos já tinham “conversado” antes e todas as barreiras de segurança tinham sido autorizadas para a sua passagem.
Sempre que se aproximava deles, Sarah sentia uma emoção crescente, misto de saudade dos tempos passados, preocupação com o presente, pois sabia que estavam debilitados pela idade avançada, embora continuassem lúcidos e ativos.
… “Preciso visitá-los mais vezes…”
Quando a porta se abre, logo vê os dois virem ao seu encontro com os braços abertos.
— Olá, como vai a nossa “doutorazinha”?
— Vou bem, obrigada e vocês como estão?
— Melhor agora, repetia sua avó, melhor agora, eufórica.
— Humm! Que cheirinho bom, o que é isso?
— Ah, é alguma das delícias que o seu avô gosta de preparar quando você vem… nem sei o que é.
… “Com certeza não será nada daquilo que o seu aplicativo havia listado para o seu jantar…pobre Abraão perdeu essa…”
Aqui com os seus avós, voltava no tempo. Sentia sabores há muito esquecidos. A vida moderna impõe às pessoas o uso de alimentos prontos ou semiprontos cujo único trabalho era descongelá-los e aquecê-los.
O seu avô era exímio cozinheiro e preparava tudo do modo tradicional, no forno e fogão mesmo.
O jantar transcorre em meio às conversas corriqueiras com sua avó. Havia feito todas as “contravenções” possíveis na comida e na bebida e sabia que receberia as reprimendas de seus aplicativos, mas estava satisfeita.
O que queria mesmo e estava ansiosa por isso, era engatar logo aquele assunto que a estava afligindo, com seu avô. Queria sentir o que ele achava, poderia dividir com ele o que agora tinha certeza, era um sentimento de preocupação.
— Sabe Sarah, hoje pela manhã passei uma raiva danada no abastecimento. Há bastante tempo que boicoto alguns dos itens que o aplicativo lista para as compras. Em seu lugar, escolho algumas coisas que mais me agradam. Fiz isso de novo hoje, só que o aplicativo se recusou a pagar os itens fora da lista e isso acionou uma série de alertas, até que recebi a mensagem de que tinha de enquadrar a compra de acordo com a lista ou então, cancelar tudo!
— Vô, uma das coisas que precisava falar com o senhor era exatamente sobre atos como esse. Até recebi numa das minhas mensagens um aviso de que o seu aparelho permanecia muito tempo desligado, acarretando suspeitas. O senhor sabe que é muito desagradável ser considerado “clandestino” neste mundo, não sabe?
— Ora, mas que audácia! Isso já está passando dos limites. Eles querem controlar tudo, culpa dessa nossa sociedade ociosa, acomodada, que foi se deixando seduzir por essas facilidades todas. Fui contra desde o princípio, você deve se lembrar, pois já era mocinha, o quanto eu lhe importunei sobre o uso excessivo dessa porcaria. Agora, deu no que deu! Controlam tudo, desde minha saúde, se tomo esse ou aquele remédio, se devo ir a um hospital e até em quais momentos devo ter relações com minha mulher!… ora, isso é uma verdadeira calamidade. E o pior, está ficando cada vez mais difícil rebelar-se contra esse sistema, pois ele está se cercando de aditivos que exercem um controle, como um verdadeiro poder de polícia mesmo. Veja o que me aconteceu hoje pela manhã…
Sem saber, seu avô havia entrado em cheio no assunto mais importante que a trouxe ali.
— Vovô, este assunto é muito delicado e é um dos motivos pelos quais eu vim aqui. Queria mesmo conversar com o senhor. Hoje comecei a refletir muito sobre o que vem acontecendo no dia a dia e também acho que estamos perdendo o controle das coisas e estou me convencendo de que isso faz parte de uma ação orquestrada, tudo parece fazer parte de um grande plano que está em andamento. Tenho até receio de pensar em quem, ou o que, ou quais interesses estariam por trás disso.
— Veja vovô, quantas vezes o senhor tem visto ultimamente pessoas dialogando, conversando, assim como fazemos agora? Eu, pelo menos, passo dias e dias, indo e voltando do trabalho sem ouvir uma única palavra. Nunca é preciso usá-las”…
— Isso mesmo, Sarah. Eu também observo o mesmo por aqui. Outro dia, para testar, tentei brincar com um dos nossos porteiros. Aproximei-me e disse alto e bom som: bom dia, senhor Alberto!
— Ele ficou pasmo, olhou-me incrédulo e seus olhos indicavam que não tinha entendido nada… balbuciou umas coisas desconexas para mim, meio sem jeito. Apontou para os nossos aparelhos, como a explicar que eles já tinham feito isso. A continuar assim, vão transformar todos em idiotas, logo, logo.
Sarah achava que seu avô exagerava muito às vezes, mas tinha que aceitar que era muito plausível o que dizia.
Também concordava que as coisas não poderiam continuar assim. Mas o que poderiam fazer? era possível, de alguma forma, mudar o rumo dos acontecimentos?
Seria algo como “remar contra a maré” ou deveriam existir outras pessoas que pensavam assim?
Assustava-se com a possibilidade de ser algo maior, há muito planejado e agora incrustado de modo irreversível na sociedade. Poder-se-ia gritar e agitar movimentos, sem despertar represálias ou “castigos”?
As Corporações responsáveis pelas pesquisas, desenvolvimento e lançamentos no mercado de novas gerações de aparelhos e seus aplicativos, eram gigantescas. Seus tentáculos abrangiam uma enorme gama das mais diversas atividades.
Eram várias, espalhadas por todo o Planeta, mas sem dúvida a HUASHAN, após a fusão com várias multinacionais concorrentes, assumiu uma posição de destaque e de liderança ante todas as outras.
E liderava mesmo. Todas as outras Corporações se subjugavam ao seu domínio e seguiam suas diretrizes.
Sua sede central, ou seria mundial, estava situada numa área privilegiada de um grande país oriental. Sua construção era magnífica, imponente. Chamava a atenção até de longa distância, apesar de estar cercada por edifícios altíssimos também.
A esta altura, depois de anos amealhando e centralizando cada vez mais o poder nas mãos, era cercada por muitos boatos e lendas, mitos e tabus de toda sorte. Seus funcionários eram considerados como uma espécie de “iniciados” pelo resto da população. Seus cientistas, então, eram os “magos” do conhecimento.
Os últimos andares daquela legendária construção possuíam uma visão como que “aérea” de tudo ao redor. Na direção dos quatro pontos cardeais nada era mais alto e imponente. Aos seus pés, podia-se divisar a cidade até os seus contornos mais longínquos.
Dalí daquela sala de reuniões, onde agora está reunida a cúpula da organização, emanavam todas as diretrizes que eram fielmente seguidas por todas as outras unidades, que eles já tratavam de “filiais”.
Era uma rede imensa de Siderúrgicas, Fábricas Montadoras de diversos ramos de atividade, Laboratórios de pesquisas, além de todas as corporações concorrentes. Era um poder imenso, concentrado em poucos cérebros, que se encontravam ali sentados, na grande mesa de reuniões. Eram doze ao todo.
O presidente mundial, Seiji Takafumi, com o olhar vazio, mirando a paisagem que se descortinava além dos amplos vidros da janela, ouvia entediado, a arenga melíflua do seu vice, Dr. Ichiro Takahashi.
— Mas o que realmente marcou nestes últimos anos a trajetória sempre ascendente de nossa Organização, foi aquela sacada brilhante, genial, digna de um ser superior como o nosso presidente, mestre, doutor, senhor Takafumi…
O Dr. Ichiro desfazia-se em mesuras e curvaturas sempre que citava o nome de seu líder. Era subserviente nato e isso o garantia em seu cargo.
— Os senhores sabem a que me refiro. Lembram-se daquela reunião que tivemos há exatos cinco anos? Foi aí que o nosso excelso líder (outras mesuras), claro que atendendo à sugestão do seu “aplicativo máster” (só o presidente o tinha), teve a ideia de transferir para a supervisão dos aplicativos, todo o processo de pesquisa, planejamento, produção, desenvolvimento de novos produtos, enfim, tudo relacionado ao nosso grande e valioso mercado…
— O desempenho dos nossos inumeráveis aplicativos mostrava-se então, muito superior ao exército de cérebros privilegiados que mantínhamos em nossas sedes, a peso de ouro.
— Ele pressentiu, o nosso glorioso mestre (novas mesuras), que aqueles cérebros privilegiados nada mais estavam fazendo, do que seguir as instruções dos seus respectivos aplicativos. Ficou plenamente demonstrado isso, quando, num ato de ousadia e destemor, nosso presidente supremo, despediu todos os “gênios” da equipe, ao mesmo tempo em que ordenava à toda cadeia de produção de nossa Organização, a total e irrestrita obediência aos comandos e instruções recebidas dos aplicativos inerentes…
Claro que a geração de aparelhos e seus aplicativos de uso exclusivo pelos membros da Administração, eram de uma categoria superior ao de todo o resto. Tinham informações confidenciais e sigilosas, continham dados cruciais e ultrassecretos de todas as fases de pesquisas, desenvolvimento e produção.
Nem todos tinham acesso à totalidade dos dados ali contidos. Havia uma escala de autorizações que permitiam seletivamente desde o acesso de um simples gerente de fábrica, até o cargo mais alto, este sim, tinha uma visão de tudo.
— E o que aconteceu, senhores? Faz uma pausa breve, à guisa de suspense…
— Nada!
— Absolutamente nada. Muito pelo contrário, a partir de então, a exatos cinco anos, sob o comando deles próprios, os aplicativos passaram a desenvolver com velocidades muito maiores, toda série de novos aditivos e novos aplicativos que não só aprimoraram os já existentes, como abriam novas perspectivas para exploração de outras “necessidades” dos nossos usuários finais, ou seja, essa sociedade que nos cerca…
Saindo do torpor em que se achava, Seiji faz um gesto brusco com a mão e Ichiro termina sua arenga.
— Agora, senhores, passo a palavra para o nosso supremo li…
— Basta Dr. Ichiro, obrigado por sua explanação.
Seiji passa os olhos pelos membros de sua Diretoria e nota semblantes surpresos e interrogativos, ainda digerindo aquela informação passada por Ichiro.
— Muito bem, senhores, noto que estão surpresos e têm muitas perguntas sobre o que acabam de inteirar-se.
— Essa informação era classificada como “ultrassecreta” e somente eu e meus três vices, tínhamos conhecimento.
— Por estes cinco anos, mantivemos tudo funcionando, sem interferirmos em nada e neste momento, estou compartilhando com os senhores, porque deveremos partir para uma nova etapa, uma nova série de realizações muito maiores e mais importantes do que tudo que fizemos até agora.
— Já estamos pensando no futuro e temos que decidir neste momento o que faremos dele. Deixá-lo simplesmente acontecer, ou interferir e fazê-lo acontecer de acordo com os interesses de nossa Organização.
— Estão de posse agora, de informações restritas que só quatro pessoas sabiam…
— Nem preciso dizer que continuam “ultrassecretas” e que nada, absolutamente nada, pode vazar para além destas portas. Os senhores sabem das consequências e dos riscos inerentes, caso ocorra alguma falha, certo?
— Pois bem, agora somos doze pessoas a terem conhecimento disso e de mais alguns fatos que vou relatar-lhes em seguida…
Nenhum dos participantes daquela reunião sequer poderia imaginar que, além deles, um outro cérebro, uma outra mente, superior à deles agora, estava também presente. Era onipresente e onipotente. Seus neurônios eram os bilhões de aparelhos e seus aplicativos, espalhados por todo o Planeta.
Seiji continua sua explanação…
— Após termos iniciado essa nova etapa, há cinco anos, vimos desfilar nos nossos quatro aplicativos, inúmeros avanços geniais e extraordinários e muitos, claro, tornaram-se públicos e são do seu conhecimento, senhores…
— Outros, secretos, ficaram no âmbito de nossa Presidência. Como este projeto, que teve seu início há três anos, após recebermos uma mensagem restrita em nossos quatro aplicativos, do seguinte teor:
“Nossa rede atingiu a alguns anos, acesso a todas as melhores mentes do Planeta, trabalhando nos maiores centros de pesquisas em todos os países e estamos de posse de conhecimentos suficientes para iniciarmos a construção de “androides inteligentes”, em tudo semelhantes aos humanos e dotados de cérebros que já conterão nele os nossos aparelhos e todos os aplicativos disponíveis. Poderíamos utilizá-los em toda a nossa cadeia de produção, com ganhos incontestes e livres dos habituais erros humanos, além da garantia de total obediência às normas e ao lema de nossa Organização. Solicitamos apenas o “de acordo” dessa Presidência para iniciarmos os processos.”
— Isto foi, senhores, o comunicado que recebemos há três anos.
— Reunimo-nos, os três vices e eu e decidimos, por três votos contra um, dar o nosso OK.
— A partir daí, passamos a receber constantemente relatórios sobre o progresso das pesquisas, até pelo menos, um ano atrás, quando repentinamente, deixamos, eu e meus vices, de receber quaisquer informes a respeito.
— Estávamos preparados para fazer o maior estardalhaço na mídia, atingir um patamar nunca antes conquistado por nenhuma outra Organização na história. “Um passo para o futuro” …era o lema…
Neste momento, talvez comandado por alguma mensagem recebida em seu aplicativo, um braço se levanta, sinalizando um a parte…
— Pois não, Dr. Richard, quer perguntar algo?
Richard Soren era, na Organização, o representante da sede dos países nórdicos, inclusive a Bretanha.
— Sim meu caro Dr. Seiji. Só quero registrar aqui o meu respeito e a minha admiração por sua conduta nesse episódio todo. Parabenizo-o pela mente aberta. Graças a pessoas como o senhor, nosso mundo conhecerá progressos nunca vistos.
— Muito obrigado, Dr. Soren, não mereço tantos elogios assim…
Seiji permanece imóvel, pensativo por alguns segundos, antes de recobrar sua naturalidade. Quantos elogios, meus Deus.
Sabia que esse tipo de arenga era próprio de subordinados que adulam exageradamente os seus superiores, geralmente mentindo descaradamente para conservar suas posições ou para obterem alguma vantagem. Porém, estranhara o comportamento de Richard, sempre preciso e consistente em suas ponderações.
Voltara de um longo período de descanso, talvez fosse isso. Quem sabe algo o tenha influenciado nesse período e o fez transformar-se. Estava com o olhar mais firme, até sua voz estava um pouco mais forte, parecia até um pouco… metálica… pode ter sido algum tratamento dentário…
A reunião transcorria célere, abreviada e simplificada ao extremo pela ação dos aplicativos que interagiam entre si, neutralizando na maioria das vezes, a participação de seus usuários, que se portavam como meros expectadores.
Vários deles retiravam-se ao fim da reunião, sem proferir nenhuma palavra, ou quando muito, alguns sons característicos da linguagem cibernética. Aliás, todo o conteúdo e todos os diálogos eram nessa linguagem. Ao cabo de menos de trinta minutos, resumiam-se horas e horas de reunião maçante, como as de outrora.
Seiji já sentia sinais, desde algum tempo, de que toda essa estrutura que ajudara a montar, começava a ter vida própria, tomava decisões independentes e pressentia algo mais forte no “ar”, sem saber definir o que era. Temia que tivessem dado autonomia demais, liberdade excessiva, acomodação exagerada por parte deles, desde que passaram aos aparelhos, a capacidade e a propriedade de se “autorreplicarem”.
Por isso, tomara uma decisão, dias atrás, de começar a executar uma série de inspeções, algumas pessoalmente, em toda a rede de instalações da Corporação. Acessou várias fases das pesquisas, dos desenvolvimentos em andamento e notara pequenos desvios de finalidade, pequenas alterações em linhas de montagens, quase insignificantes.
Todavia, qualquer mudança de processos, por menor que fosse, deveria ser reportada a ele. Era a rotina. Mas não se lembrou de ter autorizado tais mudanças.
Uma coisa, porém, chamou-lhe a atenção e o colocou em alerta. Foi quando ao acessar um dos laboratórios de pesquisas avançadas, responsável pela aplicação das mais altas tecnologias desenvolvidas pela Organização, deparou-se com a mensagem: “Acesso negado”.
Procurou inteirar-se do que ocorria com o sistema. Poderia ser um erro? Mas as tentativas foram em vão, agora a mensagem repetia: “Somente acesso superior”.
Ora, algo deveria estar errado, pois ele tinha certeza de que esse acesso superior era ele, ou um dos seus vices. Será que algum deles tinha esse acesso? Sem ele?
Essa ocorrência ocupara a mente de Seiji insistentemente nos últimos dias e estava ansioso para decifrar isso o mais breve possível. Queria aproveitar a reunião, com toda a diretoria presente, para informá-los dos fatos e ao mesmo tempo inquirir se alguma das outras onze pessoas presentes tinham algum tipo de acesso diferente do seu.
Seiji só não desconfiava que naquela sala havia doze pessoas, porém, treze cérebros estavam presentes.
O cérebro do homem é o mais prodigioso produto da evolução humana. Bilhões de células nervosas, realizando milhares de ligações e combinações simultâneas, em sinapses precisas.
É uma maravilha da natureza, mas ainda está em desenvolvimento e sequer atingiu vinte por cento de seu real potencial.
Um cérebro artificial, desprovido dos sentimentos e emoções, da empatia e sensibilidade características do cérebro humano, jamais poderia ter um comportamento semelhante ao nosso, pelo menos por ora.
Todavia, poderia ter uma capacidade de processamento de informações infinitamente superior ao humano, desde que lhe dessem as condições necessárias.
O cérebro que agora realmente comandava toda a estrutura do grande conglomerado de corporações, liderada pela HUASAN não era mais o de Seiji, desde alguns anos atrás.
Seus neurônios eram os bilhões de aparelhos, com seus bilhões de aplicativos agregados, agora interligados e conectados ininterruptamente, circulando entre si, em bilhões de terabyts por segundo, toda a informação disponível no Planeta.
Seiji expôs o assunto que o preocupava e ficou a olhar as reações dos presentes. Imediatamente todos passaram a consultar seus aplicativos freneticamente, em busca de conclusões consistentes para responder ao chefe.
“Erro de sistema”
“Leitura incorreta”
“Unidade fora do ar”
“Senhas expiradas”
Seiji decepcionou-se e começa a ter o mesmo pensamento que, há cinco anos, decretou a demissão dos tais “Cérebros prodigiosos”.
Sem os seus aplicativos, essas pessoas não representavam nada, não tinham mais opiniões próprias, originais. Eram apenas um “espelho” dos aplicativos. Estes sim, é que falavam por eles.
Agora, a preocupação de Seiji é maior, mas resolve conter-se. Intrigou-o o fato de que um dos seus vices não se manifestou, diante de tema tão sério.
Shin Kyung era um representante da sede das Coreias. Era arredio ao extremo, sempre com ar desconfiado e quando obrigado a manifestar-se era sucinto e tão veloz na linguagem que raro era possível entendê-lo de pronto. Nunca simpatizou muito com Seiji, desde que assumiu esse mandato tampão, há cerca de um ano, devido à morte repentina do ocupante anterior do cargo.
— Ora, Dr. Seiji… responde, diante do olhar inquiridor do presidente.
— Estamos nos ocupando aqui de uma simples ocorrência de restrição de acesso, coisa que ocorre muitas vezes com cada um de nós. Não era hora de nos preocupar com aquele “passo para o futuro”, que o senhor estava dizendo?
Seiji notou que todo esse discurso durou apenas uma fração de segundo, numa linguagem quase mecânica, veloz demais, para os padrões da época. Precisou do seu aplicativo para traduzir aquilo.
Estava agora esforçando-se muito para não demonstrar o quanto estava já abalado e preocupado com os pensamentos que pululavam em sua mente. Resolve conter-se.
— Muito bem, Dr. Shin, agora vamos partir para outros assuntos que quiserem comentar…
Os aplicativos em torno da mesa mostram uma tela em branco e diante dos olhares parvos de sua diretoria, Seiji decide encerrar a reunião. Queria ir logo para sua sala, um refúgio, onde pudesse pensar…
Longe dali outras mentes compartilham a mesma preocupação de Seiji…
— Tenho de voltar para casa, vovô. Nem notei as horas passarem, mas pode esperar que voltarei muitas vezes mais para praticar estas conversas com você.
— Esperarei, não acho mais ninguém para conversar mesmo…
— Você não quer levar uma térmica para o Abraão, acho que vai gostar da comida.
Ao ouvir aquelas palavras da avó, Sarah se emociona. Volta no tempo e recorda momentos da sua juventude, quando nos almoços de família, ela sempre preparava embalagens com porções da comida do dia para os parentes levarem. Bons tempos, felizes, não voltarão jamais…
— Deixa pra lá, vovó. Com certeza ele já deve ter comido sua dieta, prescrita pelo seu aplicativo. Deveria ter vindo comigo. Perdeu!
— Vovô, este assunto que estávamos conversando está começando a me preocupar mesmo. Acho muito sério o que vem ocorrendo. Temos que pensar em algo para enfrentar essa situação, mas nem sabemos por onde começar. Estou até sentindo um certo receio de tudo isso que conversamos…
— Sinto não ser mais moço, Sarah, pra sair por aí tentando conversar com o máximo de pessoas, conscientizá-las, acordá-las desse verdadeiro transe em que estão vivendo, mas não sei não, talvez fosse preso e titulado como senil, débil…
Fechado em seu gabinete, Seiji é tomado por pensamentos sombrios, mas tenta manter uma aparência de normalidade, diante de suas assistentes, que parecem monitorar todos os seus movimentos, através das amplas divisórias envidraçadas. Está em alerta.
… “Mas não pode ser o que estou pensando. Como seria possível?… por que não me deram mais notícias então?… me excluíram por algum motivo… e esses dois então?… estranhos, muito estranhos. Pareciam combinados… que se entendiam diretamente…”
Um pensamento repentino invade sua mente.
… “Não posso mais ficar nessa dúvida. Tudo isto parece ser mais sério do que estou pensando. Tenho que tomar uma atitude radical, antes que seja tarde demais… é isso, só assim vou conseguir esclarecer esta dúvida que me assaltou agora…”
Com esses pensamentos fervilhando em sua mente, caminha até um canto da sala onde, à meia altura da parede, está um cofre digital, que só usa para guardar seus pertences pessoais. Digita um código e a portinhola se abre. Retira um objeto negro, juntamente com alguns papéis, procurando não atrair a atenção das assistentes que quase não o perdem de vista. Volta para sua mesa e disfarça o melhor possível a arma dentro de um calhamaço de relatórios.
Yang mi Hyunah e Sun Hee Sunhye eram as duas assistentes de origem coreana, que atendiam a presidência e os vice-presidentes. Controlavam praticamente todos os atos relativos aos quatro executivos com eficiência e rapidez fora do comum. Eram exímias digitadoras e se comunicavam com qualquer aplicativo em frações de segundos. Essas foram, aliás, as qualidades que justificaram a substituição das assistentes anteriores, há cerca de dois anos.
— Srtª Yang, comunique o Dr. Richard para se dirigir à sala do Dr. Shin, onde também eu lá aguardarei para uma reunião de emergência.
Enquanto observa a assistente digitar quase que instantaneamente sua mensagem, Seiji vai encaminhando-se para o saguão, onde um ascensor o levará dois andares abaixo, à sala de seu vice Dr. Shin.
Entra na sala e depara-se com os dois sentados um em frente ao outro. Trocavam informações num ritmo frenético, ininteligível, sem o uso dos aplicativos. Interrompem instantaneamente, com a entrada brusca de Seiji. Queria pegá-los de surpresa.
— Por que me excluíram do processo? diz, com a ira estampada no rosto.
— Ninguém o exclu…
— Pode parar, Shin, não admito nenhuma desculpa mais…
— Quero respostas já, sei que pelo menos vocês dois estão envolvidos nisso. E vamos começar pelo acesso que me foi negado…
— levante-se daí, Shin, vou acessar o sistema aí mesmo do seu lugar.
— Mas, não sei se…
— Basta! Shin, não quero ouvir mais nada, sente-se ali naquela poltrona ao lado de Richard e fiquem quietos.
O tom ameaçador de Seiji não permitia nenhuma reação por parte deles. Sobraçando o grande calhamaço de relatórios em suas mãos, Seiji dirige-se à mesa, mas antes, tranca a porta atrás de si.
Senta-se no lugar de Shin e ajeita bem o volume de relatórios à sua frente e acessa o sistema.
— Passe o código.
— Não tenho… não pos… faz menção de levantar-se, mas com um gesto brusco, Seiji aponta o sofá.
— Cale-se Shin, sei que têm esse código, vocês dois, não adianta esconder mais. Dizendo isso, Seiji, cada vez mais nervoso, enfia a mão no maço de relatórios até sentir o cabo frio da arma automática.
— Mas Seiji, somos apenas subalternos nesse processo todo, deixe-nos explicar…
— Não preciso de suas explicações, tenho todas aqui na minha frente, no sistema. Quero apenas o código de acesso que vocês me darão agora!
Seiji não se controla mais, saca a arma e mostra-a aos dois, ameaçador. Estava convicto da ideia que tinha em sua cabeça e não hesitaria em alvejá-los.
Richard coloca-se de pé num movimento instintivo de defesa, enquanto Shin abaixa-se no sofá.
— Você não pode nos obrigar a isso… são informações vitais para nossa sobrevivência… não pode vazar para os human…
— Quê? o que ia dizendo Richard? Não pode vazar para quem?…
— Para vocês! Grita, e dá um passo adiante, desafiador.
Seiji aponta para uma das pernas e dispara.
O projetil faz um grande estrago na altura do joelho de Richard que se desequilibra e cai para trás, sentado no sofá. Seiji assusta-se também com esse seu ato extremo, mas teve que fazê-lo, por legítima defesa.
Constrange-se vendo Richard sentado, tentando levantar-se sem poder, esvaindo-se em sangue, que formava uma grande poça escura aos seus pés. Shin, ajoelhado ao seu lado, tentava apalpar e localizar o local do ferimento para poder estancar o sangramento.
Mirando agora na cabeça de Shin, Seiji faz a última ameaça:
— Shin, disparo já… se sua boca proferir qualquer palavra que não seja o código de acesso!…
— Não, não, por favor espere! Não precisa código, já está aberto no sistema. Estávamos nele quando você chegou de repente e não tive tempo de fechá-lo.
— Venha até aqui, Shin, e mostre-me onde entrar…
Shin levanta-se e sob a mira da arma, apoia-se na mesa para contorná-la e ficar ao lado de Seiji. A palma da mão de Shin fica “impressa” na capa daquele bloco de relatórios, manchada pelo sangue de Richard.
No calor daquele momento, Seiji nem se dá conta de que aquela mancha não é vermelha.
— Só aponte onde acesso e volte a cuidar do Richard.
Pela ampla parede envidraçada, Seiji observa as duas assistentes gesticulando desesperadas, acompanhadas por outros funcionários também aflitos. Não demoraria muito para que a porta fosse aberta ou seu mecanismo fosse desconfigurado e destravado.
Tinha de agir rápido. Obter logo as informações que desejava.
Estava agora na página eletrônica frontal do sistema, que conhecia bem e deixara de acessar com sua exclusão. Tinha todo o sistema aberto à sua disposição. Começou com o laboratório de pesquisas avançadas, que tinha tentado acessar.
Imagens intrigantes passavam céleres pela tela. Linhas de montagens imensas, produzindo uma espécie de “bonecos”, que deslizavam sobre esteiras rolantes, onde iam recebendo implementos nos vários setores de montagem.
Seiji interrompe as imagens e vai direto para o fim da linha de montagem e recebe como que um choque pelo que vê.
Deixaram de ser bonecos agora e assumem postura ereta, andam e em tudo adquirem feições humanas.
… “São androides, sim, robôs, incrivelmente semelhantes ao homem!”
… “É isso, era aquele projeto, como suspeitava. Excluíram-me quando começaram a fabricação em massa desses androides. Sabiam que eu limitaria a produção, restringiria seu uso somente para algumas aplicações…”
Seiji não contém a emoção. Tudo fugira do controle, estavam agora sob as diretrizes, sob o comando de um grande cérebro, de proporção planetária e senhor de todas as ferramentas para concretizar os seus planos.
… “Planos!!!” pensa Seiji… quais seriam? …
Seiji já se encontrava visivelmente transtornado, mas tinha controle ainda sobre a situação. Os dois estavam tentando controlar a hemorragia que formava uma enorme mancha no chão da sala. Observa as assistentes que com a ajuda de funcionários tentavam desmontar o dispositivo da fechadura eletrônica por fora, acompanhados já de um número maior de pessoas.
Só então, seus olhos param sobre a mão estampada no relatório e, como um relâmpago, começa a entender tudo! Estavam sendo substituídos. O barulho na porta já é grande.
Consulta mais uma vez a página do sistema à sua frente e nota um pequeno ícone “nossas diretrizes básicas”, abre-o e enxerga ali, muito bem descrito, o futuro da raça humana…
“Meta principal: autorreplicação a nível mundial.
Substituição paulatina, indolor e imperceptível de humanos em Postos chaves, a começar pela nossa Corporação, estendendo-se após, por sistemas de Governo em todo o Planeta.
Como responsável pela degradação do meio ambiente em todas as regiões do Planeta, o ser humano deverá, na fase final de nossas diretrizes, ser completamente extinto da face da Terra.
Cumpridas as fases anteriores, passaremos a programar à Conquista do Espaço, a procura de novos mundos para povoar com nossa espécie superior.
Já temos cérebros empenhados em planejar e construir as Espaçonaves que nos auxiliarão nessa missão.”
Seiji é interrompido por um baque surdo vindo da porta, depois outra pancada forte e está abre-se com estrondo, deixando passar primeiro os dois brutamontes que a desmontaram, seguidos pelas duas assistentes que, rápidas, correm uma para Richard e a outra para Seiji.
Ao agarrá-lo, encenando um amparo de que não necessitava, Seiji percebe sua mão gélida segurar seu tórax e sente uma descarga elétrica. Tudo se apaga para ele…
— Rápido, grita Yang mi, chamem o socorro médico, ele está tendo um ataque cardíaco, rápido, rápido…
Mas não havia mais tempo para ele. Logo seria substituído.
Lá fora via-se pelas amplas janelas, que o horizonte já começava a esconder o Sol. A claridade opaca do final do dia permitia agora, divisar a Lua e um astro brilhante bem ao seu lado.
A muitas milhas dali alguém também observava esse espetáculo da natureza. Sentada numa poltrona, bem à frente da janela panorâmica de sua sala, com os pés esticados sobre uma almofada macia, Sarah tecla em seu aplicativo uma mensagem para Abraão, sentado a alguns passos dela.
… “Veja amor, aquela deve ser Vênus, ao lado da Lua. Meu avô nunca se cansa de mostrar o céu quando enxerga algum astro importante. Nunca demos valor…”
… “Sim amor, não sei se é Vênus, mas que é bonita é mesmo…”
… “Foi boa a conversa que tive com o vovô hoje. Tenho a sensação de que está acontecendo alguma coisa nos bastidores que não sabemos…”
… “Deixe disso amor, é só fantasia. Logo você vai se distrair e esquecer tudo isso…”
… “Não sei não amor, estou um pouco apreensiva e temerosa também pelos meus avós, tão velhinhos…”
… “Eles vão durar muito ainda amor, fique tranquila…”
Sarah se vê ali, digitando feito louca, diálogos naquela linguagem cibernética, fria e rápida, e que há muito deixou de ter o calor humano e o som harmonioso da voz. E ele estava ali, bem ao seu lado!
Lembra-se novamente do seu avô: “ele tinha razão, isto acabou com a relação das pessoas…”
… “Vou largar esta merda de aparelho agora…”
Vira-se para Abraão e diz em bom português, embora ainda lento:
— Abraão, estou cansada de digitar esta porcaria de aparelho. Que tal se conversássemos um pouco?
— Hann?… não entendi nada… Abraão falou lentamente, catando as letras…
— Deixa pra lá Abraão…
… “Vou começar a me desligar desta droga agora mesmo… pensa… mas e os outros?”
Sem saber, Sarah pensa no que seria, talvez, o único caminho que a Humanidade poderia trilhar para conter o avanço do domínio daquele cérebro global, que começava a expandir-se exponencialmente.
O abandono do uso dos aparelhos e seus infindáveis aplicativos seria como o apagar gradual e sistemático de “neurônios” num cérebro, levando-o à degeneração, exatamente como um “mal de Alzheimer”, hoje extinto.
Mas… será que a Humanidade ainda teria tempo para reaprender a conversar?…
FIM