Naquela madrugada uma tempestade castigou a cidade, com raios, trovões e rajadas de vento que vergavam as árvores mais altas. Mas a natureza sempre acha o seu ponto de equilíbrio e logo aos primeiros sinais do alvorecer, o Sol prometia um dia radioso. E, naquela manhã fresca e límpida, o que mais se presenciava eram as pessoas lavando e varrendo as folhas e galhos das suas calçadas, ruas e quintais.
Não foi diferente no Boteco do Jacinto. A grande árvore do pátio também sofrera suas perdas na tempestade. Uma quantidade de folhas e galhos cobria toda a extensão do estacionamento.
Jesus, pacientemente, com um vassourão, estava concentrado em fazer montículos com os detritos para depois coletar e depositar no cesto.
Era a hora em que Genoveva normalmente saía para ir à faculdade. Até pensou em não ir nessa manhã, mas vendo aquele dia maravilhoso despontando, animou-se.
—Bom dia, Jesus, que trabalheira, hein?
—Faz parte, dona Genô, faz parte…a nossa árvore foi bem castigada…
Ela olha para cima, para a copa da grande árvore para ver o estrago, e nota num dos galhos mais altos…
—Olhe ali em cima, Jesus, parece um papagaio…aponta com o braço esticado.
—É sim, dona Genô, é mesmo um papagaio, mas parece desorientado, assustado…coitado.
—Deve ter se perdido com a tempestade da madrugada. Pode ter sido arrastado e parou em nossa árvore, talvez porque ela é a mais alta da redondeza.
—Vamos tentar cuidar dele, Jesus…diz, abrindo a porta do carro.
—Deixe comigo, dona Genô, se ele for selvagem e veio de alguma mata, ele vai embora logo. Mas se for domesticado, ele vai procurar algum alimento e água e vai descer de lá…
—Cuide dele, Jesus…tenho que ir agora…
Quando retornou, no meio da tarde, encontrou uma situação bem diferente e que a surpreendeu. O louro já tinha até um poleiro, improvisado pelo Jesus, ao lado de uma plataforma, contendo uma panelinha d’água, metade de uma maçã, restos de uma banana com casca e tudo, e um montículo de girassol no cantinho. E o louro parecia satisfeito andando de um ponto ao outro do poleiro.
—Ele é doméstico, dona Genô, mansinho que só ele…todos gostaram dele. O seu Jacinto até mandou comprar ração e também providenciar uma gaiola decente pra ele…e veja, ele tem até um anel no pé…
—É anilha, Jesus. Isso significa que tem dono e foi registrado no IBAMA. Vamos cuidar dele, sim, mas até o dono aparecer.
—Não sei não, dona Genô, e se ele veio de longe…vai ser difícil acharem ele aqui…aliás, estou torcendo pra não virem mesmo.
Jesus já pensava que tinha encontrado uma mascote para o Boteco.
Os dias passam ligeiro e o papagaio já possuía uma gaiola espaçosa, um lugar abrigado no pátio e era o xodó do Jesus, que nem queria imaginar que um dia teria que haver a separação. Estava até tentando ensiná-lo a cantar…..aatireiii ôoo ppauuu no gatoto…mas o louro ficava impassível.
—Fernando, você já falou com aquele seu amigo que trabalha na rádio?
—Falei há uns cinco dias, Genô. E, inclusive, ele me disse que conseguiu com que falassem do papagaio em três manhãs consecutivas.
—Soube que apareceram alguns pretensos donos por aqui…
—É, apareceram mesmo, mas quando pergunto quando o louro desapareceu, eles dão datas completamente fora, e o papagaio não teve reação nenhuma com nenhum deles. É sabido que eles reconhecem as pessoas que cuidam deles.
—Ah, Fernando, estou sentindo que você está gostando disso…
—Normal, Genô, a gente vai se afeiçoando…mas tenho que lhe dizer uma coisa. Agora há pouco recebi uma ligação de uma senhora, perguntando sobre o papagaio. Disse que ouviu na rádio e gostaria de vir ver a ave. Mora longe, perguntou se poderia vir amanhã cedo.
—Mais um, Fernando…Genoveva procurava mostrar-se indiferente, mas no íntimo, desejava que fosse mais uma tentativa em vão.
Na manhã seguinte, uma caminhonete estaciona no pátio e uma senhora, acompanhada de uma moça descem e procuram por Fernando.
—É a pessoa que me ligou ontem, Genô, quer ir lá comigo?
—Vou sim e vou chamar o pai para vir também…e dá um sinal para Jacinto que acabara de descer.
—Bom dia, senhor Fernando, nós nos falamos ontem, sobre o papagaio. Esta é minha filha…
Fernando vai direto ao assunto.
—Bom dia, senhora, como perdeu o seu papagaio?
—Foi na tempestade de três semanas atrás, o vento arrasou tudo lá em casa e acabou destelhando um viveiro onde tenho algumas aves com o louro, que aproveitou e fugiu apavorado…se eu o vir, saberei se é ele…
Fernando sente que a mulher está dizendo a verdade e provavelmente é mesmo a dona do papagaio. Então, faz um sinal para Jesus, que, ressabiado, aguardava num canto do pátio, onde abrigava o louro.
Jacinto, então, sugere:
—Não precisa o Jesus trazê-lo aqui, vamos todos nós para lá.
A reação da mulher ao ver o louro é genuína e emocionante…
—É o meu Zico…é o meu Zico…Zico, Zico…
O louro dançava no poleiro pra lá e pra cá e cantava…
—trude…trude….trude….trude
Aí a mulher tira da bolsa uma camisa rubro-negra e balança para o louro, que começa a cantar…
—M Mêngooo..mêngooo …mêngooo…
A mulher chorava com a filha. Jesus também chorava, mas por outro motivo, sabia que era a separação.
—Não há dúvida de que o louro é seu, senhora…
—Gertrude, esta é minha filha Laura. Ela é que é flamenguista e ensinou isso para ele. Vejo que foi bem tratado aqui, mas fiquem tranquilos, pois lá no meu sítio ele leva uma vida de rei e logo vai ser papai…e, se quiserem, doarei um filhote para vocês, o que acham?
Jesus para imediatamente de chorar e se anima…quero sim, quero sim, pode trazer um para mim…
Um feliz reencontro se realizou naquela manhã, porém, esse dia era um dia especial e um outro reencontro importante aconteceria naquela mesma noite.
Jacinto conversava animadamente com um cliente no seu canto favorito do balcão e não percebeu Genoveva encaminhando aquelas três pessoas à mesa de costume. Logo em seguida, ela se aproxima…
—Pai, desculpe interromper, mas aquelas duas senhoras de quem me falou outro dia, chegaram e estão no lugar de sempre…
Ele procura aquela mesa no canto e reconhece a mulher.
—É ela…é ela, sim, Genô…tenho que falar com ela, tirar essa dúvida, esclarecer esse mistério…desculpe, senhor Paulo, depois continuamos nosso papo, com licença…e sai, dando uma palmadinha na mão do homem. Antes, abre uma gaveta do balcão e retira três fotos que havia guardado ali.
“Meu Deus…é idêntica à foto…quem será…e esse homem será o marido…e a outra, uma amiga?”
Vai se aproximando da mesa e nota que ela já o havia visto e parecia aguardá-lo. Quanto mais se aproximava, mais ele confirmava a semelhança dela com a mulher da foto. Aguardara por vários dias aquele momento de estar frente a frente com ela.
—Boa noite, senhoras…eu sou o Jacinto e…
—Sei quem é o senhor, já o conheço de longa data, senhor Jacinto, fique à vontade, o que deseja?….diz, notando o nervosismo dele.
—Preciso mostrar-lhe uma coisa…esclarecer…
—O senhor nos conhece?
—Ainda não…
—Então, vamos nos apresentar…este é o senhor Jaime, meu motorista e esta aqui é minha companheira Gabriela e eu sou Alice…porque não se senta?…esta mesa é para quatro pessoas mesmo…diz, simpaticamente.
Jacinto começava a recuperar sua presença de espírito. Senta-se e coloca as fotos na mesa.
—Esta é a razão de vir vê-la, dona Alice…e coloca uma das fotos à frente dela.
Alice se emociona, segura a foto com carinho.
—Nossa!…Há anos que não vejo esta foto…nem sabia que ela ainda existia, pensei que tivesse sido destruída, com tudo o mais, no antigo casarão do Jorge…
Jacinto lhe passa as outras duas fotos e ela tem a mesma reação.
—Como sabe sobre o casarão do meu tio Jorge, dona Alice?
—É uma longa história, senhor Jacinto, o seu tio e eu praticamente crescemos juntos. Essa que está na foto é minha mãe Renata e eu sou a menina que ela segura pela mão. Todos diziam que eu era a imagem dela. Talvez, essa semelhança é que chamou a sua atenção, senhor Jacinto.
—Não foi só isso, foi também a proximidade com a minha família. Nessas fotos, parecem pertencer à mesma família, no entanto, nunca ouvimos falar de vocês, pelos nossos pais…
—Eu também conheci o seu pai e a sua mãe, o senhor José e a dona Luisa. O seu irmão Jorge era um pouco mais novo que eu e você era muito pequeno então. Brincamos juntos muito tempo, depois nos separamos e só viemos a nos reencontrar depois de adultos. Então, não nos separamos mais, inclusive, passamos a trabalhar juntos até ele se aposentar e sempre que possível, eu vinha nas festinhas que ele organizava aqui, neste mesmo lugar, onde era o seu casarão. E continuo a vir aqui, por nostalgia, saudade do Jorge e daqueles tempos. Sabia quem era você, senhor Jacinto, mas nunca pensei em informá-lo sobre isso.
—O que os tornou tão próximos naquele passado?
—Os nossos avós eram sócios em um armazém, e o destino quis que ficassem viúvos. O seu avô, após uma longa enfermidade da sua avó e minha avó, que perdeu o marido na guerra. Os dois viúvos, seu avô e minha avó, embora não existisse mais o vínculo da sociedade, continuaram amigos. Depois de algum tempo, as famílias resolveram separar-se, devido àquelas dúvidas que surgem sempre nesses casos. Será que os dois tiveram um caso?…Será que a Renata não é filha de ambos?…Minha mãe mudou-se e nunca mais se viram, e eu e o seu irmão interrompemos também a nossa amizade.
—Quando o reencontrei, anos mais tarde, ele tinha se formado em direito, como eu, e tinha prestado concurso, também como eu, ele se tornou analista em uma Vara Cível e eu, tinha passado recentemente no concurso para juiz e, logo depois que assumi, convoquei o Jorge para trabalhar na minha Vara. Posteriormente, foi promovido a meu chefe de gabinete, cargo que ocupou até aposentar-se.
—Saiba, senhor Jacinto, que Jorge era um homem inteligente, íntegro, de caráter irretocável e sempre se queixava de não ter um bom relacionamento com o senhor, devido a brigas do passado, por culpa do seu pai. Sempre guardarei boas lembranças dele.
—É isso, senhor Jacinto, agora sabe de tudo e espero que possamos continuar reativando uma amizade que vem de muitos anos, desde que o senhor tinha quatro anos, embora só agora nos reencontramos…
O homem se manifesta…
—Doutora Alice, o momento requer um brinde. Proponho que façamos isso…
—Bem apropriado, Jaime, concordo…e você, Gabriela?
—Estou seca por um desde que cheguei aqui.
—Este fica por minha conta…Jacinto sinaliza para uma garçonete próxima e pede o melhor vinho de sua adega.
Ficam ali por horas, conversando e comemorando aquele reencontro aguardado a tanto tempo…
FIM