Inês é uma das amigas íntimas de Genoveva. Conheceram-se nos primeiros dias de faculdade, quando descobriram que eram vizinhas no bairro em que moravam. Sempre que os horários coincidiam, combinavam de fazer o trajeto juntas, ora no carro de uma, ora no da outra. Inês cursava direito e Genoveva Psicologia.
Com o passar do tempo tornaram-se confidentes. Inês considerava Genoveva como sua terapeuta, para quem exteriorizava todos os pormenores de sua vida íntima. Apaixonada pela matéria que estudava, Genoveva procurava esmerar-se cada vez mais nos conselhos e orientações que dava à amiga. Era uma área da Psicologia que passou a interessá-la recentemente, depois de uma longa palestra que teve oportunidade de ter, ali mesmo no boteco, com um grande especialista em terapia de casais.
Há muito que Genoveva acompanhava a vida conjugal tumultuada da amiga. Pouco antes de ingressar na faculdade, Inês e seu namorado Marco Antônio, que se relacionavam a cerca de dois anos, resolveram unir seus destinos e morar juntos, muito a contragosto de seus familiares, que desejavam um casamento tradicional depois de sua formatura.
Marco Antônio interrompera seus estudos para dedicar-se exclusivamente ao seu trabalho. Era proprietário de uma loja de compra e venda de automóveis no centro da cidade. Genoveva já o tinha conhecido no boteco, numa oportunidade em que viera com Inês. Bem-apessoado, bom falador, era uma figura simpática e demonstrava ser apaixonado por ela.
Estavam juntos a quase sete anos, agora. Inês e Genoveva já se preparavam para suas formaturas, quando as discórdias entre eles se agravaram.
Assim que a viu chegar ao boteco, Genoveva logo pressentiu que ela desejava desabafar e, sinalizando para a amiga, a convida para uma mesa mais reservada, afastada do burburinho normal daquele horário.
— Boa noite, Genô… parece bem disposta, minha amiga…
— Boa noite Inês, estou animada sim, deve ser o efeito das horas em que me afundo nos estudos e depois venho para cá me aliviar. As provas finais estão chegando, Inês, está se preparando também?
— Não muito, o clima em casa não anda muito bom e isso está me afetando a concentração nos estudos…
Genoveva percebera que a constância das queixas dela tinha aumentado bastante nos últimos meses. Algo mais significativo poderia estar ocorrendo na vida do casal. Era sua amiga e detestava vê-la assim deprimida, comprometendo anos de sacrifício nos estudos, justamente agora, que estava prestes a finalizar.
— Muito bem, amiga, vamos nos sentar ali naquela mesa mais retirada, onde poderemos conversar à vontade.
— Obrigada, Genô, estou precisando me acalmar um pouco e você consegue isso sempre, com as palavras certas. Será uma excelente psicóloga, minha amiga, aliás, já é…
— AhAhAh, estou tentando, Inês, estou tentando, mas agora, vamos começar pedindo aqueles nossos drinks favoritos, o que acha?
Sentada ali, ouvindo as queixas sentidas da amiga, ela repensa os anos que passou exercendo aquele trabalho no boteco, que nem considerava trabalho, mas sim, como um estágio de psicologia aplicada, que lhe permitia o contato direto com a enorme diversidade de pessoas e suas infinitas peculiaridades.
Atenta ao desenrolar da narrativa de Inês, ela não consegue deixar de rememorar o momento em que seu pai a chamou, juntamente com seu irmão Fernando, para explicar a experiência que acabara de ter com um dos clientes, justamente esse mesmo cliente que há poucos dias estabelecera uma longa conversação com ela, sobre o tema que mais a atraía… as diversas facetas da psicologia, matéria em que ele era proeminente catedrático.
As palavras sábias daquele homem causaram profunda ponderação e raciocínio sobre a matéria que estudava e reforçou ainda mais sua aspiração de tornar-se uma profissional competente e estudiosa. Quando viu pela primeira vez aquele senhor taciturno, de barba grisalha, de terno e colete, saboreando o melhor whisky do boteco, jamais imaginaria quem era ele. Somente quando seu pai a chamou, com seu irmão, e pediu que Fernando pesquisasse seu nome na internet é que souberam de quem se tratava:
“Professor Doutor Lúcio Penteado Ramalho, 66 anos,
Neurologista, Psiquiatra e Psicoterapeuta
Com Doutorado na Harvard University
Formado pela Universidade de São Paulo – USP
Da qual é professor emérito e onde periodicamente
Autor de vários livros sobre “Psicopatologias”
Especialista em terapia de casais.”
Incrível a surpresa que a vida lhe apresentava. Esse homem era citado frequentemente, como referência no seu curso na universidade e desfrutava de um conceito formidável nos meios acadêmicos. E estava ali, no boteco do seu pai, humilde e anônimo, sem se enaltecer ou vangloriar…
Nisso, Jacinto foi enfático com os filhos. Deve continuar assim, se ele não se identificar, fingiremos que não sabemos quem é e será tratado como qualquer outro cliente, entendido?… talvez ele queira esse anonimato…
Inês continuava a descrever as inúmeras incompatibilidades entre ela e Marco Antônio e Genoveva continuava a pensar naquele homem que tanto a sugestionara e que, de certa forma, a estava ajudando a aconselhar Inês. Lembrou-se do último encontro com ele…
Aconteceu na sexta-feira da última semana, abalada por uma violenta tempestade que isolou o boteco por mais de duas horas, alagando ruas e avenidas ao redor, retendo todos os clientes.
Ele estava lá, procurou Genoveva perguntando por Jacinto e quando soube que era seu dia de folga e estava junto de seus amigos, exigiu que ela não o perturbasse. Foi quando ela principiou aquela longa conversa com ele. Depois de muito conversar, ele finalmente se identificou e esclareceu sua principal atividade, tudo que ela fingiu não saber, mas sem ostentar nenhuma ufania por isso. Subiu mais ainda em seu conceito.
Explicou que era um resolvedor de “crises” e possuía um consultório muito próximo dali, num ponto nobre. Sempre priorizou a qualidade de seus clientes e nunca a quantidade deles, pois sua ambição sempre foi a de solucionar suas crises e nunca deixava de envolver-se profundamente nisso.
Genoveva aproveitou a deixa e já que estava às voltas com a “crise” conjugal da amiga Inês, extraia lições fundamentais com que poderia lidar oportunamente.
— Você está numa boa escola, menina, faz um bom curso e será uma boa profissional. Se um dia se interessar, meu consultório estará aberto para estagiar e fazer uma boa residência. Aquilo deixou Genoveva nas alturas.
— Quanto ao que me pergunta, sobre crises em casamentos, posso lhe dizer, com experiência de anos, que elas podem ser causadas por fatores muito diferentes ou uma combinação de vários fatores, que levam a problemas no relacionamento. Não obstante, existem algumas causas muito comuns de crises, que envolvem:
E não se esqueça, menina, cada casal é um mundo à parte e é possível que apresentem outros desafios em seu relacionamento. Caberá sempre a você buscar um diálogo aberto com o eles e tentar encontrar uma solução juntos.
“Meu Deus!…aquilo tinha sido uma aula como nunca teve na faculdade e despertou nela mais motivação ainda para continuar se aprimorando cada vez mais nessa matéria que amava… até bendizia aquela tempestade que aprisionou todos no boteco!”
Foi um dos últimos clientes a sair naquela noite. Somente depois que as ruas e avenidas no entorno foram desobstruídas é que pode acionar seu motorista para buscá-lo. Genoveva fez questão de acompanhá-lo até a saída.
Passando pela mesa dos amigos, Jacinto os vê e vem cumprimentá-lo.
— Boa noite, senhor Jacinto, pelo que parece, estão enfrentando uma situação agitada, aconteceu algo?
— Um dos nossos amigos ficou retido no centro pela tempestade. Não tínhamos conseguido contato com ele até agora há pouco. Somente com a chegada da sua esposa aqui é que fomos informados do que ocorreu. Ela veio nos encontrar aqui e fez o mesmo trajeto que ele costuma fazer, porque ficou transitável, com a baixa das águas. Viu o seu carro abandonado e todo enlameado. Encontrou um bombeiro próximo, que por sorte era conhecido de Beto que lhe explicou o que tinha acontecido. Com a subida das águas naquele local, logo formou-se uma enxurrada que começou a carregar tudo para baixo. Beto ao abandonar o carro desequilibrou-se e foi arrastado por alguns metros. Perdeu sua arma, seu distintivo, seus documentos, seu celular. Mas tão logo recuperou-se, passou a ajudar os bombeiros, que auxiliavam várias pessoas ilhadas nos bares, restaurantes. Quando deu-se conta, tinha passado algumas horas. Uma viatura dos bombeiros já o levou para casa.
— Puxa, senhor Jacinto, por pouco ele não se tornou uma vítima desse temporal, hein?
— É, senhor Lúcio. Espero que tenha ficado bem aqui, nestas horas obrigatórias que permaneceu retido.
— Estive em muito boa companhia, senhor Jacinto. A senhorita Genoveva aqui é uma excelente proseadora, quase nem percebi o tempo passar…
Inês continuava seu rosário de queixas e Genoveva volta à sua realidade presente. Como amiga, deveria consolar a amiga, mas não podia se furtar a pensar como uma profissional. Interrompe a narrativa interminável de Inês…
— Bom, Inês, você está com sérios problemas de relacionamento com o Marco Antonio. A continuar assim, essa crise pode se transformar em algo mais sério e causar até o fim de seu casamento. O que recomendo é que tenha um bom diálogo com ele e procurem encontrar os principais motivos de tudo ter chegado até esse ponto. Vou dar-lhe uma relação de algumas das principais causas de crises entre casais. Conversem sobre elas, e tentem identificar se é alguma delas que está provocando a infelicidade de vocês.
Genoveva lista para Inês todos os ítens citados pelo Doutor Lúcio.
— Se isso não melhorar as coisas, minha amiga, então a solução será procurar a ajuda de um bom profissional e, caso precisem mesmo, até poderei indicar um excelente terapeuta de casais, vizinho nosso. Mas espero que se entendam, Inês, sinceramente.
— Muito obrigada, Genô, mas neste momento, o melhor remédio é repetirmos este drink maravilhoso…
Genoveva sentia-se recompensada e acena feliz para um garçom próximo, precisava comemorar aquela noite de psicologia aplicada.
FIM