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O Segredo de Carmem - Parte 2

Subiu as escadas seguindo a esposa, sentindo no ar a fragrância do perfume favorito dela. No último degrau, ela aciona as luzes da sala e vira-se para Jacinto.

—Espere por aqui… “seu Jacinto” …vou buscar as provas do crime.

O carrinho de bebidas a um canto atrai o seu olhar. Serve-se de uma dose do seu whisky favorito e aproxima-se da janela, contemplando a noite lá fora. O ar parado deixava as folhas e galhos da árvore do pátio completamente imóveis e lá, bem longe no horizonte, na direção das serras, fora das luzes da cidade, pode ver alguns raios esparsos, riscando o céu escuro.

Começa a vagar pela sala, notando o esmero sistemático de Carmem… as fotos de família, dispostos sobre o mármore da lareira, os livros na estante, impecáveis e rigorosamente alinhados e organizados, os quadros que escolheu nas paredes, o aparador sempre com um vaso de flores coloridas e perfumadas… sentia o toque pessoal dela em todos os cantos.

Sentia-se já arrependido de ter provocado aquela reação na mulher, notou o ar de decepção dela, fitando aquela cara de dúvida que ele fazia. Lutou para controlar-se, mas não pode reprimir aquela pontinha de ciúme, esse sentimento vil, que, se alimentado na mente, cresce e faz suas vítimas cometerem qualquer desatino, quase sempre, infundadamente.

Conhecia bem sua mulher. Era voluntariosa, inteligente, orgulhosa e independente e que seria incapaz de cometer algo como aquilo que teve a ousadia de pensar. Sentia-se diminuído diante dela, pelo gesto que assumiu. Resolve manter-se quieto, deixá-la desabafar e acalmar-se.

Dali a instantes, Carmem retorna trazendo nas mãos um volumoso calhamaço de documentos e o deposita na mesinha de centro e senta-se na poltrona em frente. Faz um gesto com a palma da mão indicando a outra poltrona para Jacinto.

O silêncio daquele momento só foi quebrado pelo tamborilar dos grossos pingos da chuva forte, que começava lá fora, batendo nos vidros da janela. Ela permanece alguns segundos fitando Jacinto, que não tirava os olhos da pilha de papéis.

—Isso aí que está olhando, “seu Jacinto”, é a razão de ter-me ausentado por tantos dias, consumindo horas do meu tempo e também do tempo das minhas amigas, que estão me ajudando nessa tarefa. Tudo estava sendo feito em segredo, até aqui, pois tratava-se de uma surpresa que eu pensei em fazer para você…

—Estou decepcionada, “seu Jacinto”, pensei que me conhecesse melhor… não sei como teve a coragem de pensar o que eu sei que pensou… ridículo!… Se tivesse me questionado eu teria todas as respostas… mas preferiu adotar aquele tom de desconfiança com que me recebeu lá embaixo…

Aquelas palavras o tocam profundamente e o fazem refletir sobre o quanto desejava abraçá-la, desculpar-se, mas temia a sua reação. Conhecia-a bem, era metódica, o caminho para conquistá-la seria mais longo.

—Está tudo aí, “seu Jacinto”… pode abrir a pasta… diz, fazendo um meneio com a cabeça indicando o calhamaço na mesinha.

—Não precisa me mostrar nada, não é necessário me provar nada, nunca tive motivos para duvidar de você, meu bem… estou tremendamente arrependido de ter tomado essa atitude ridícula que tomei… sinto ter te decepcionado assim… foi insegurança, medo… sei lá… fraqueza por ter deixado um sentimento desses se instalar na minha cabeça… mas quando notei as várias ausências suas… que voltava das corridas sem estar suada… e hoje, quando passou o dia quase todo fora… não consegui pensar em mais nada, só queria esclarecer tudo… desculpe… você tem a sua independência, a sua autonomia para fazer o que bem entende e sabe que eu sempre admirei a sua discrição, sua lealdade, o seu bom senso… por isso, em mais de vinte anos que estamos juntos, jamais tive qualquer motivo para um sentimento desses que me assombrou hoje…perdoe, meu bem, mas foi por puro medo diante de uma possibilidade de perder você para algum cara por aí, mais bonito do que eu…

Aquilo provocou um riso prolongado de Carmem e isso era o que Jacinto desejava. Quando ela fazia isso, era um sinal de que a tempestade estava passando. Esse foi o motivo de ter sido tão enfático no seu discurso de autodefesa, sabia que tinha que ser muito convincente.

Ainda com os olhos lacrimejando depois da grande gargalhada que dera, Carmem recompõe-se e assume um ar mais sério.

—Muito bem, vou pensar… e espero que limpe essas porcarias da sua mente.

Ele sabia que era do feitio dela nunca ceder de imediato, mas sentiu que a metade do caminho foi feito, pois notou que não o chamou de “seu Jacinto”. 

Agora, ele tinha que esmerar-se na segunda parte do seu discurso para reconquistá-la. Pensava em planos mirabolantes, performances arrebatadoras… olhou para ela, sentada ao seu lado… é linda, merece muito mais do que isso…

—Não sei o que o senhor está pensando, mas agora, vai ter que olhar isso e terá a sua surpresa, que estava reservada somente para daqui a dez dias…

Não poderia evitar, diante do olhar incisivo da mulher… pega o pacote de documentos e começa a folhear…

Eram orçamentos, guias de importação, formulários diversos, contrato de fornecimento internacional, planilha de custos do frete aéreo, desembaraço aduaneiro, nacionalização de máquinas… e previsão de entrega para aproximadamente dez dias… boa parte em inglês…

“Mas o que ela está importando, afinal?”

Ao virar a última página do calhamaço, uma foto reluzente daquela máquina, com suas luzes de néon acesas, causam grande impacto nele…

—Mas é ela!… é a máquina de música que venho falando há tempos que gostaria de instalar no Boteco… é exatamente o modelo que pensei… igual àquela que vi no filme… Jacinto não continha a euforia.

—Você está comprando ela, querida?… como conseguiu achar esse modelo?… onde foi buscar isso?

—Não sabe o trabalhão que deu. Precisei da ajuda de nossas amigas. A Cleusiane, esposa do Henrique, é professora de inglês, você sabe, e auxiliou demais nos contatos que fizemos com o fornecedor, que achamos em uma cidadezinha do interior dos Estados Unidos, através de um site americano. Ele possuía esse modelo que você me mostrou no filme, a tal de “jukebox”. Custou para chegarmos a um acordo razoável quanto ao preço… depois foi a hora de preparar a documentação, veja o tamanho da papelada aí, uma complicação só. E quem me ajudou nisso tudo?… a Neusa, esposa do Beto, que havia trabalhado num escritório de despachos aduaneiros e conhecia bem o dono. Depois, quem me ajudou com a parte do pagamento, conversão e transferência dos valores acertados?…. a Marilú, esposa do Alemão, que ainda trabalha no banco, sabe bem disso também. E finalmente hoje, dia em que nós quatro marcamos um encontro para combinarmos tudo para o dia em que a máquina chegasse e fosse entregue aqui, mas tivemos que esperar a Marilú sair do banco, depois das seis da tarde e isso nos atrasou e acabei chegando àquela hora…

Jacinto ria eufórico, começou a admirar mais ainda a mulher… queria correr para abraçá-la e beijá-la, mas, incerto da reação, decide esperar e fazer isso depois daquele discurso e dos planos mirabolantes.

—Meu Deus!… finalmente, meu amor, vou ter a minha jukebox aqui no Boteco… e ela já vem com repertório?

—Ele disse que está totalmente restaurada e guarda todas as características de uma máquina dos anos sessenta e setenta, com muitas músicas dessa época… então, pode esperar algumas do Elvis Presley, outras dos Rolling Stones, sem falar dos Beatles…

Ele não resiste mais e corre para abraçá-la e é correspondido. Permanecem um longo tempo em silêncio, por fim ele murmura em seu ouvido… obrigado, meu amor…

—Agora preciso me trocar… tomar um belo banho… vai descer ainda?

—Nem pensar!! diz, já pensando e procurando aprimorar o seu “discurso mirabolante”…

FIM

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