Era o dia de compras para o Boteco. Jacinto sempre saia antes do Sol. Gostava da tranquilidade das ruas antes do trânsito, da amenidade do tempo, de vagar sem pressa pelos corredores do entreposto, atrás da melhor qualidade para os produtos de que precisava. Quase sempre retornava no final da manhã, mas naquele dia, tinha encontrado tudo mais rápido do que habitualmente.
Estaciona a caminhonete no espaço reservado à família e nota a ausência do carro de sua esposa.
—Bom dia, dona Amália, peça para o Jesus tirar as mercadorias da caminhonete, vou ter que sair em seguida.
—Deixe comigo, seu Jacinto.
Alguns minutos depois deixou o Boteco, tinha marcado uma visita com o contador, para apurar algumas dúvidas levantadas por Fernando.
Algumas quadras depois, se depara com o carro de Carmem, estacionado em frente a um pequeno prédio de apartamentos. Não havia ninguém por perto e também não havia mais vagas para estacionar e o trânsito atrás o obrigava a seguir.
Estranhou. Ela tem sua independência, mas não deveriam existir segredos entre eles. Sempre admirou sua discrição, a sua postura elegante. Carmem estava em vias de completar os cinquenta anos, mas estava em plena forma, é uma mulher bonita e vistosa, pois cuidar da aparência sempre foi uma das suas fixações.
Uma pontinha de dúvida procurava se instalar em sua cabeça, disputando lugar com as outras preocupações mais prementes que o acometiam, como aquelas certas contas do Boteco que não batiam, segundo seu filho.
Conhecia o contador há anos, desde os tempos do mercado. Até batizara um dos seus filhos, do segundo casamento. Os seus encontros, agora mais esparsos, devido aos afazeres do Boteco, costumavam se estender por horas, recordando os velhos tempos, assuntos de família, de futebol e até de política, pois o Calixto, por ser muito conhecido no bairro, estava pensando seriamente em candidatar-se a algum cargo eletivo. Sorri, pensando no Carlão… ele faria um slogan perfeito para ele… “aqui é o Calixto da Contabilidade, vote em mim e…”
Encontra-o na saída do escritório.
—Puxa, Jacinto, você chegou na hora certinha, por pouco não me encontra aqui. Mas foi bom, porque vou te levar para almoçar num lugar em que nunca fomos antes…vamos andando, é perto, só umas duas quadras daqui.
—Pô, Calixto, não é muito cedo para almoçar?
—Quase meio-dia?…diz, consultando o relógio… gosto de comer mais cedo, pois assim, o trabalho rende mais à tarde… vamos, sei que vai gostar… e dá um tapinha no ombro do amigo.
Duas quadras ouvindo aquele papo alegre do Calixto, debaixo de um Sol de trinta e quatro graus, fizeram Jacinto entrar rapidamente no clima daquela amizade.
Ao dobrar a próxima esquina, dão de frente com uma movimentada feira livre, com toda a gritaria característica… “leve a nossa banana”… “a nossa dúzia aqui tem dezoito laranjas”… ”olha o mamão docinho”… ”tá chegando a hora da xepa”…
—Caramba!, Calixto, esqueceu da feira?… vamos ter de atravessar essa multidão para chegar ao restaurante?
—AhAh, quem falou em restaurante, Jacinto. É aqui mesmo que vamos comer… vai saborear o melhor pastel de feira desta cidade e um caldo de cana com abacaxi mais gelado do que aquelas “raspadinhas”, lembra?
A visão do caldo de cana gelado, com aquele Sol abrasador do meio-dia, mais o bom papo do amigo, animaram Jacinto e o fez perder totalmente a noção do tempo.
A tarde avançava, o Sol começou a dar lugar a algumas nuvens escuras no horizonte. Olhando pela janela do escritório, agora com as dúvidas esclarecidas, Jacinto viu um bom motivo naquelas nuvens para se despedir do amigo.
—Espere um pouco, Jacinto, já pedi para a copeira trazer dois cafezinhos…
—Vou tomar e partir, Calixto. Está vendo aquelas nuvens escuras lá?… e aponta para a janela… estão bem no meu horizonte e ainda tenho um trânsito de final de tarde pela frente…
Já era noitinha quando chegou ao Boteco. Ao estacionar, outra vez, nota a ausência do carro da mulher.
—E o serviço, dona Amália, tudo em ordem?
—Tudo, seu Jacinto, estamos prontos para qualquer movimento.
A noite chega com aquela expectativa de chuva forte na cidade e a falta de uma brisa refrescante, intensifica ainda mais a sensação de calor.
—Que foi, pai, parece um pouco pensativo, distante…
—Só um pouco cansado, Genô, estive lá com o Calixto a tarde toda… você viu a sua mãe?
—Quando cheguei da faculdade, ela não estava em casa, porquê?
—Não deve ser nada, mas ela não chegou até agora…
—Ora, pai, ela é uma mulher independente, sabe disso, e, se tivesse acontecido algo, já teria nos ligado, não acha?… relaxa, o Fernando está vindo falar com você…vou circular por aí…
—Pai, examinei aqueles papéis que trouxe da contabilidade e parece que está tudo em ordem. Depois dou uma repassada mais técnica e te informo, ok?
Aguardava com expectativa o retorno de Carmem. Não poderia terminar aquele dia, sem esclarecer a dúvida que o incomodava.
Minutos depois, vestida com um dos seus impecáveis vestidos cor de rosa, cor que ela adorava, Carmem entra sorridente no salão, carregando uma sacola. Faz um aceno para Genoveva e vai encontrar Jacinto que a aguardava encostado no balcão.
Por segundos, como num passe de mágica, a visão daquela mulher se aproximando o faz entrar numa espécie de transe, esquecendo as dúvidas que povoavam a sua mente.
“Caramba!…como a minha mulher é bonita!… charmosa”…
—Olá, querido, perdi um pouco a noção do tempo hoje…
—É mesmo, não a vi o dia todo…
—Nos desencontramos. Quando cheguei pela manhã, você já tinha saído para ir ao contador. Resolveu tudo com ele?, o Fernando tinha algumas dúvidas…
—Parece que sim, o Fernando está analisando a papelada que o Calixto mandou … .e foi correr?
—Hoje não, tive que tratar de um outro assunto importante… porquê?
—Pensei ter visto o seu carro estacionado em frente a um prediozinho de apartamentos…
Pela primeira vez, ela nota um certo ar de dúvida nas palavras do marido. Não esperava isso e entende que não conseguiria continuar mantendo o seu segredo por mais tempo.
—E pensou o que, “seu Jacinto”?
Chamá-lo daquele modo, era sempre o prenúncio de uma conversa mais séria.
—Não suporto esse clima, “seu Jacinto”, portanto, chegou o momento de esclarecer as coisas… vamos subir… vai ouvir toda a história…
Jacinto segue atrás pensativo, sabe que esta história não poderia terminar agora…
FIM