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O Piloto

Um dos lugares favoritos de Jacinto era atrás do balcão. Com uma postura sempre tranquila e amena, atraia aqueles clientes solitários, carentes de um ouvido amigo para desabafarem suas confidências. Depois de ouvir centenas de desabafos, dramas familiares, atritos conjugais, intrigas de trabalho, ele considerava ser ali, o “confessionário” do Boteco.

Ao longo do tempo, sentia que os clientes não buscavam nenhum aconselhamento psicológico, opiniões, ou qualquer tipo de ajuda, só queriam mesmo era desabafar, tomar algumas doses de bebida e conversar com alguém. E funcionava… a maioria deles, no final, se diziam aliviados.

Aquela noite estava movimentada, véspera de feriado prolongado. Genoveva ia acomodando os clientes que chegavam. Fernando se aproxima…

— Pai, o Jesus veio me avisar que tem várias pessoas aguardando no estacionamento. Não temos mais mesas disponíveis… posso liberar a cativa da turma?

— Só se for para uma família numerosa, Fernando. Não quero nenhuma turma de rapazes bagunçando lá…

— Ok, vou dar uma olhada, pode deixar.

Um homem de meia idade entra e começa a dirigir-se ao balcão. Jacinto nunca o tinha visto antes e nota que ele desejava conversar. Ele aproxima-se e escolhe a banqueta bem à sua frente, senta-se e pede um whisky com gelo.

— Nunca o vi por aqui, senhor…

— Gilberto… sim, é a primeira vez que aqui venho…

— E como descobriu o nosso Boteco?

— Foi muito bem recomendado por uma sobrinha minha, que os conheceu recentemente. Elogiou muito e pediu que não deixasse de dar uma passadinha por aqui, inclusive, pediu-me que, se viesse, agradecesse muito um senhor Jacinto, que suponho, seja o senhor…

— Sim, sou eu mesmo. E sua sobrinha vem muito aqui?… eu a conheço?

— Ela é de Salvador, possui uma lanchonete lá e me disse que esteve uma semana por aqui, treinando algumas pessoas.

— Por acaso, sua sobrinha é a Georgina?

— Ela mesma.

— Ela é uma pessoa adorável. Todos nós gostamos muito dela. E foi muito eficiente no que veio fazer, treinou muito bem a nossa chef de cozinha. Diga-lhe que será sempre bem-vinda aqui e quando a vir, transmita-lhe o nosso abraço.

O homem já iniciava a sua segunda dose de whisky…

— E o senhor é de lá?

— Sim, minha família é toda “salvadorense”.

— Ué, não é mais “soteropolitano”… brinca Jacinto.

— Prefiro o termo nacional mesmo. Mas fico muito pouco tempo por lá, pois viajo muito por este país todo.

— Puxa! a rotina então, não deve fazer parte do seu trabalho… deve ser bom conhecer lugares novos, pessoas diferentes…

— Que nada! depois de um tempo, tudo acaba virando rotina e começamos a sentir falta das nossas raízes, de ficar mais próximo da família.

Um misto de nostalgia e angústia domina as palavras daquele homem e Jacinto sente que está querendo conversar.

— No começo é tudo maravilhoso, um dia em cada lugar, pessoas e costumes diferentes, cidades lindas. Ainda bem, que por enquanto, não faço viagens internacionais, senão, já estaria divorciado nesta altura…

— O pior é controlar o ambiente em casa, com a mulher. Elas não aceitam as nossas constantes ausências e isso é o principal motivo das brigas domésticas. Eu, raramente saio de casa para trabalhar, sem ouvir alguma reclamação da minha mulher.

Jacinto era todo ouvidos. O homem precisava desabafar…

— Este whiskynho é muito bom, pode repetir a dose, seu Jacinto.

— Como bom baiano, acho que não vai recusar um acarajé, o que acha? é a receita da sua sobrinha.

— Então, deve estar muito bom mesmo, mas tenho que recusar, pois estive com ela ontem em Salvador e acabei ingerindo uns três ou quatro antes de embarcar. O problema é que me deu um desarranjo no avião, que quase me complica todo, passei um mal bocado, com a barriga borbulhando, suando frio e ficando verde… me aguentando para não cagar na poltrona.

— Imagino, senhor Gilberto… e num avião não temos muito conforto nos banheiros, pouca privacidade… melhor mesmo é não precisar. Mas como conseguiu resolver?… Jacinto pensa naquela imagem, esforçando-se para não rir.

— Não seria muito difícil resolver essa situação, seu Jacinto, se eu não fosse o comandante do avião… por sorte tinha um copiloto experiente que me quebrou o galho e então, pude ir, disfarçadamente ao banheirinho, me comprimindo todo, mas a cueca já estava comprometida naquela altura…

Aí Jacinto não consegue refrear o riso e os dois caem na gargalhada.

— Então, o senhor é piloto, senhor Gilberto… acho que é o primeiro que recebo aqui.

— É que as companhias já têm convênio com alguns hotéis destinados ao pernoite das tripulações, seu Jacinto, e, do jeito que estão as escalas de serviço hoje, mal dá para sair e tomar um drink por aí. Meu hotel fica longe daqui, sempre escolhem algum próximo dos aeroportos. Só pude vir até aqui, porque meu equipamento está retido em Porto Alegre e só vai chegar amanhã cedo, quando nós vamos render os nossos colegas.

— Mas, sua profissão tem prestígio, senhor Gilberto, um certo glamour e sua família deve entender isso.

— Foi tempo, seu Jacinto. Os tempos modernos estão mudando muita coisa. De vez em quando vemos chegar novos equipamentos, cada vez mais automáticos, que vão esvaziando aquele prazer de voar de antigamente. Já inventaram até um automóvel sem motorista, logo, logo…

— Só uma coisa parece não mudar nunca, seu Jacinto, o pensamento das nossas esposas, que continuam achando sempre que uma das nossas funções é seduzir todas as aeromoças da companhia, um estigma que persegue a nossa profissão. Eu, com cinquenta e oito anos, ainda escuto isso sempre da minha mulher.

Jacinto imagina o que esse homem deve estar enfrentando em casa e tenta desviar a conversa…

— Já viajei muito, senhor Gilberto, mas nunca deixei de me perguntar como um bólido de trezentas toneladas decola e depois acha o seu rumo tão precisamente… a habilidade do piloto aí é fundamental…

— Em parte, seu Jacinto, em parte. Na realidade, tudo é definido ainda em terra, quando inserimos no sistema gerenciador de voo, que é um computador sofisticado, o plano de voo, com todas as informações inerentes… as rotas pré-definidas, as altitudes obrigatórias, velocidades e o código da estação de destino… pronto, o computador envia as informações para todos os instrumentos do painel que passa a gerenciar todas as etapas do voo, assim que os pneus deixam a pista…

— Ora, senhor Gilberto, eu sei que está querendo simplificar demais as coisas. Vendo por esse ângulo, parece fácil, mas não deve ser tão simples assim, pois para lidar com tudo isso, é necessário um treinamento constante, atenção redobrada… imagino a tensão nas aterrissagens…

— Também nesse ponto, temos o auxílio de outro sistema valioso, seu Jacinto, que se chama ILS, sistema de aterragem por instrumentos. Com ele pode-se aterrissar sem nem mesmo enxergar a pista.

— E como ele faz isso?

— É como um farol, colocado na cabeceira da pista que emite um sinal que é captado pelos instrumentos de bordo que levam a aeronave a se alinhar ao eixo da pista. Outro instrumento define a razão de descida e depois começam os sinais dos marcadores, que vão avisando a distância da pista, até o último sinal quando os pneus estão a apenas trinta centímetros da pista.

— Ah, pode falar como quiser, senhor Gilberto. Sei que não é tão fácil assim. Se não fosse o trabalho de vocês supervisionando esses instrumentos e esse computador… e não vai me dizer agora, que depois do pouso, o taxiamento também é automático, não é?…

— Ahahah… ainda somos necessários, seu Jacinto, pelo menos até eles desenvolverem um supercomputador que passe a supervisionar os outros… aí…

— Se isso acontecer, então não vai mais ter problemas para ir ao banheiro, quando der aquela diarréia, hein?

Os dois caem na gargalhada e Jacinto acompanha Gilberto numa última dose de whisky.

FIM

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