A voz severa da mulher às suas costas fez rodopiar os pensamentos em sua cabeça. Um calafrio percorreu sua espinha, ficou paralisado. Pior, já tinha bebido alguns chopes e, com a bexiga cheia, estava a ponto de urinar nas calças ou ter um infarto fulminante. Não tinha coragem de virar-se e encarar a mulher.
Esta é a história de sete amigos inseparáveis. Conheceram-se na infância, conviveram na adolescência e sonharam na juventude. Amadureceram, casaram-se, tiveram filhos e embora com atividades diferentes, tinham interesses comuns e continuaram a se reunir constantemente.
Jacinto era dono de um boteco acolhedor, com um ambiente aconchegante numa rua tranquila de um bairro nobre da cidade. Tinha uma freguesia selecionada e exigente. Sua comida de boteco e seu chopp eram apreciadíssimos. Fã incondicional de filmes americanos, fazia de tudo para aquilo parecer um “American bar”.
Era ali, o ponto de encontro dos outros seis, onde tinham seus lugares cativos. Nessas horas, Jacinto reunia-se ao grupo e transferia à mulher e aos dois filhos o atendimento aos frequentadores.
Carlão era um gozador incorrigível e excelente imitador de vozes e aproveitava-se disso, pregando peças em todos. Era perfeito. Esse dia seria especial, vinha se preparando com esmero há alguns dias, estava tudo na ponta da língua, só faltava a vítima chegar.
— Jacinto, quando ele vir no balcão, dê o sinal para as moças se postarem bem ao lado dele, ok?… o amigo faz um sinal positivo atrás do balcão.
“O pessoal está meio atrasado hoje”… pensa.
Logo o grupo se completa, com a chegada de Beto, Japa, Henrique e Alemão. Nunca se desvencilharam dos apelidos de infância. Só faltava o sétimo, a vítima da vez, o Ítalo.
Ele e a esposa eram descendentes de famílias italianas tradicionais. Antônia era de ascendência calabresa, educada com rigidez desde cedo, tornou-se uma mulher forte, autoritária e decidida e, extremamente ciumenta, mantinha o Ítalo com rédeas curtas. Ele, alegre e bonachão, gostava da companhia dos amigos e raramente faltava nos encontros, mas antes, tinha que inventar desculpas mirabolantes, sobre o trânsito, reuniões de emergência, chamados do diretor etc., para aplacar a ira da mulher.
Aquela noite a temperatura passava dos trinta graus. Ítalo chega esbaforido e vai rapidamente cumprimentar os amigos na mesa de costume, onde os vê todos, com suas canecas geladas de chopp. Estava sedento e queria logo ir buscar o seu.
— E aí, Ítalo, qual foi a desculpa de hoje?
— Qualquer coisa, falem que foi o meu diretor que resolveu me chamar fora do expediente, hein?… agora, quero pegar um chopinho desses…
Algumas vezes, Antônia conversava com alguma das esposas e sutilmente investigava para confirmar as histórias do marido.
— Estou com uma sede danada, vou pegar outro chopinho… e vai célere ao balcão.
Foi a dica para Carlão se aprontar.
Assim que Ítalo encosta no balcão, duas belas moças se aproximam dele, insinuantes, e Carlão aproxima-se silenciosamente por trás.
— Molto Bene, eh… eu lá em casa lavando louça e você aqui no maior happy hour cercado dessas sirigaitas… a voz era perfeita.
O homem embranqueceu, paralisou, não tinha coragem de virar-se e encarar a mulher… enrubescido, estava a ponto de sofrer um infarto… só notou a farsa depois das gargalhadas dos amigos.
Somente após alguns minutos e vários chopes depois conseguiu acalmar- se.
Algum tempo depois, um mal súbito fulminante levou o Ítalo.
Grande emoção no velório entre os amigos e fregueses que adoravam aquele homem. A esposa postou-se bem ao lado do caixão e chorava com devoção. Todavia, os amigos próximos sabiam que ela o traía com um antigo colega de infância. E pior, o amante também estava ali, bem próximo dela. Presenciar aquilo foi a gota d’água para os amigos. Resolvem então, pregar uma peça nos amantes.
— Carlão, você já imitou o Ítalo diversas vezes, então vamos fazer o seguinte… cochicham o plano que tinham em mente e Carlão se posiciona ao lado do caixão.
Em pleno velório, quando o caixão está prestes a descer para a cremação, o imitador estremece, se contorce todo e finge ser tomado pelo espírito do falecido.
— Esperem, meus amigos, antes que eu embarque para minha última viagem, quero agradecer a todos vocês por compartilharem da minha vida. No nosso Boteco acabei conhecendo detalhes da vida de todos, mas desconhecia alguns da minha própria, como o da minha infiel esposa que aqui chora agora, mas me traía descaradamente com esse seu coleguinha de infância. Alerto os meus filhos aqui presentes, para cuidarem bem do meu legado, antes que esses adúlteros lancem mão de tudo. Sejam felizes, meus amigos, adeus.
Comoção geral. O amante sai de fininho do velório e todos os olhares convergem para a viúva que para de chorar como que por encanto sendo cercada pelos dois filhos.
Conforme o combinado, os amigos cercam o imitador e o sacodem violentamente, a título de o acordarem do falso transe. Ele reluta, se contorce e após várias tentativas…
— Parece que desmaiei, o que aconteceu? com a cara mais ingênua que podia fazer. Em seguida os amigos saem abraçando o imitador, parecendo socorrê-lo. Lá fora, com as almas lavadas, sorriem satisfeitos cumprimentando o imitador.
— Poderíamos até deixar barato para ela, não fosse ter vindo chorar daquele jeito e ainda por cima trazer o amante a tiracolo…
Passa algum tempo e o imitador segue pregando suas peças sempre tendo como palco o boteco do Jacinto.
Os amigos então, resolvem pregar uma peça no imitador e começam a bolar um plano, mas tinha que ser perfeito, pois ele era esperto. Sabiam que ele era um ateu convicto e sempre ironizava qualquer ato religioso… — Jamais ajoelharei para ninguém…
Finalmente chegaram a um plano, porém era complexo, pois envolveria a participação de muitos frequentadores do boteco.
Seguem dias de preparação e ensaio. Com tudo pronto, contratam um locutor de voz solene, tipo um Cid Moreira, para gravar um texto preparado por eles e seria reproduzido num dos alto-falantes centrais no teto do boteco.
Escolheram o dia perfeito para encenar aquilo. Envolvia muitos coadjuvantes, inúmeros amigos do boteco e tinham sido muito bem ensaiados. Sabiam o que fazer e o que não fazer.
A noite era de calor intenso e convidava para aquela cerveja gelada, whisky com gelo e petiscos de toda sorte. A euforia no boteco era geral. Como combinaram, nessa noite a lotação era somente daqueles previamente selecionados.
Chega o momento combinado e a um sinal, Jacinto, atrás do balcão liga o som no teto central do boteco. O som de um trovão assustador e de raios, provocam o tremeluzir das luzes. Ninguém mostra o menor sinal de terem ouvido aquilo e continuam as conversas, risadas, gritos, normalmente. Somente Carlão ouviu aquilo.
— Mas o que é isso??? e olhava atônito para cima.
— Isso o quê?… vários respondem ao redor.
— Esse barulhão, o trovão… o aparelho de som deve estar com defeito… diz, olhando para o Jacinto no balcão.
— Mas ele está desligado, Carlão… e observa atrás dele a turma lhe dando o outro sinal combinado. Solta a gravação que só deveria ser ouvida por ele…
— Como desligado?
— Meu filho, escute com atenção, pois não repetirei nenhuma palavra. Você mexeu com algo sobrenatural e desconhecido… o espírito dos mortos… por isso está marcado e não deverá sair daqui hoje por aquela porta. Só uma coisa poderá salvá-lo… ajoelhar-se e pedir perdão a ele e jurar que nunca mais fará isso…
Seguem-se trovões, raios, tremeluzir de luzes. Ele olha para o salão e contempla todos sorrindo, conversando, brincando, bebendo, como se nada tivesse acontecido.
— Mas, mas, vocês não ouviram isso… olha para os amigos que balançam a cabeça em sinal negativo. Era o que faltava… Carlão cai de joelhos e começa a murmurar contrito o nome do falecido, fazendo o sinal da cruz.
A algazarra toma conta do salão, agora eram gargalhadas por todo lado e todos olhando aquela cena, Carlão ajoelhado, parecendo rezar, todo compenetrado.
Depois dessa, demorou muito para o imitador recomeçar sua rotina, doravante muito mais cuidadosa.
Somente muito tempo depois os amigos lhe disseram que tudo tinha sido uma grande farsa.
FIM