Era um hábito já enraizado na rotina de Jacinto, nos dias em que não tinha compromissos logo cedo.
Descia nas primeiras horas da manhã, recolhia as correspondências e o jornal deixados na caixa de entrada do boteco, depois dirigia-se a uma determinada mesa na área leste do salão, que recebia a luz do Sol nascente.
Separava as correspondências e depois punha-se a ler o jornal, estendido à sua frente. Gostava de folhear as páginas, deter-se em algum fato interessante, embora soubesse que era um veículo de informação já ultrapassado pelos computadores, pelos telefones celulares, pelo rádio e pelas TV’s, que noticiavam tudo instantaneamente.
Inclusive, os próprios jornais disponibilizavam suas edições “online” para quem quisesse assinar.
A chef Amália era uma das primeiras a chegar, dizia apreciar o silêncio da cozinha naquelas horas, antes da azáfama das horas seguintes, quando então, aproveitava para organizar as coisas e planejar os serviços.
A primeira coisa que fazia era coar um café forte, inundando o salão todo com o seu aroma inconfundível. E, quando via Jacinto folheando o jornal, levava-lhe uma xícara, invariavelmente.
— Bom dia, seu Jacinto, trouxe-lhe um cafezinho…
— Bom dia, Amália, como sempre, o cheiro chegou antes, obrigado.
— Já estou fazendo a lista de compras para hoje…
— Ok, Amália, passe para o Fernando depois.
— Está lendo sobre o crime?
— Crime?… que crime?…
— Um que aconteceu ontem à noite aqui no bairro, foi aqui perto…
Jacinto detestava as notícias policiais e dificilmente se detinha em alguma, preferindo virar a página.
Desdobra o jornal novamente…
— Vou procurar, Amália, mas, se foi ontem à noite, talvez não tenha saído nesta edição…
Folheia as páginas policiais e, num cantinho, uma nota da redação explicando:
Noticia inclusa após o fechamento da edição
“Assassinato brutal de famoso psiquiatra em bairro nobre da cidade choca a comunidade local”
“A comunidade médica está chocada com a notícia do assassinato brutal do Doutor Lúcio Penteado Ramalho, morto em seu próprio consultório ontem à noite”…
Jacinto experimenta uma forte comoção ao ler aquele nome. Era um cliente do boteco.
Imediatamente, fragmentos de lembranças começam a desfilar em sua mente… como aquele dia em que viu pela primeira vez aquele senhor taciturno, calado, sentado ali na banqueta do balcão, manuseando pensativo o que parecia ser uma mensagem nada agradável.
Teve o impulso de aproximar-se dele, mas respeitou o seu silêncio e até compartilhou do seu melhor whisky com ele, que continuou calado e pouco depois, saiu sem emitir uma única palavra.
Recorda-se também de que há poucos dias, sua filha Genoveva lhe relatou a conversa que havia tido com ele no dia em que ficou retido no boteco devido aquela última tempestade. Ela não cansou de elogiá-lo pelo papel que exercia na área médica, onde era uma figura querida e respeitada, reconhecida internacionalmente pelos seus livros e palestras…e várias vezes referenciado em suas aulas na faculdade.
“Meu Deus!!… mas, assassinado?… por quê?… vou ler o resto”…
“Segundo as autoridades, ele teve morte instantânea. Estão investigando o caso e informam que até o momento não há nenhum suspeito ou motivo claro para o assassinato”
“Em nossa edição de amanhã, daremos maiores detalhes sobre esta notícia”.
Fecha o jornal, extremamente abalado.
“Coitado!… não disseram nem como ele foi morto… assassinado… assalto não deve ter sido… conheço o edifício onde tem seu consultório, já estive lá, é onde também tem seu escritório o doutor Goffredo, o advogado que tratou do inventário do meu tio Jorge. Esse prédio tem um excelente serviço de segurança”…
“O que deve ter sido, então?”
Genoveva, quando soube, abalou-se também, como o pai.
— Mas o que deve ter acontecido, pai… quem poderia desejar a morte daquele homem!… o jornal não deu nenhuma informação?
— Foi ontem a noite, Genô, não tiveram tempo de apurar e noticiar tudo, disseram que na edição seguinte informariam tudo…
— Mas, nós não precisamos esperar por isso, pai, você é amigo do Beto, ele provavelmente deve estar sabendo de alguma coisa.
Jacinto não havia pensado ainda no seu amigo, que era policial, mas também sabia que ele trabalhava em outro distrito, no centro da cidade e o bairro onde estavam possuía outra delegacia.
Entretanto, era chefe dos investigadores lá e deveria ter relacionamento com colegas de outras unidades.
— Tem razão, Genô, só nos veremos na sexta-feira, depois de amanhã, mas vou ligar para ele agora, deve saber de algo sim…
Jacinto faz a ligação e conta o que havia lido para o amigo.
— Não, Jacinto, ainda não soube nada desse caso, mas, se foi aí perto, deve estar a cargo do 23 DP e você sabe, não é minha área. Porém, tenho, sim, um colega, o Jardim, que é o chefe dos investigadores lá.
— Vou dar uma apurada no caso, Jacinto, depois conversamos.
Algum tempo depois, ele retorna a ligação.
— É, Jacinto, foi bem perto aí do boteco. O Jardim está bem a par do caso e me passou algumas informações que ele até suprimiu da imprensa ontem à noite. O médico foi assassinado com dois tiros certeiros, que provocaram sua morte instantânea. Foi quase no fim do expediente dele no consultório, só sua assistente estava no local…
— Então, houve uma testemunha ocular…
— Não foi bem assim, Jacinto. Ela relatou que repentinamente um homem entrou na recepção e nem falou com ela, foi rapidamente para a sala do médico e entrou sem ser anunciado. Quando ouviu os tiros, apavorou-se e correu para o banheiro. Depois de um tempo, voltou e encontrou o doutor sentado na poltrona, morto.
— O Jardim, acertadamente, quis colher o depoimento dela, antes de vazar isso para a imprensa, pois ela poderia ter informações importantes sobre o assassino e não queriam alertá-lo sobre uma possível testemunha.
— Isso não me pareceu um assalto, Beto…
— Não sei, Jacinto. Como tenho amizade com o Jardim e vez ou outra trocamos chumbo, isto é, informações… vou me inteirar de tudo e, na nossa reunião de sexta aí no boteco, vamos conversar muito sobre esse caso, ok?
Não conseguia esquecer-se inteiramente nos dias que se seguiram. Vez ou outra, Fernando ou Genoveva sempre voltavam ao assunto, com alguma lembrança das passagens dele pelo boteco.
— Veja, pai, hoje quando ia para a faculdade, ouvi uma notícia no rádio sobre o crime, que está repercutindo, pois o homem era famoso e conhecido mesmo. Disseram que a polícia não despreza nenhuma hipótese para o crime, inclusive da possibilidade de latrocínio ou vingança, por algum cliente de sua clínica psiquiátrica e que até este momento das investigações não tinham nenhum suspeito…
— Pode ser que estejam omitindo algumas coisas, Genô, para não prejudicar as investigações, mas na minha opinião, isso foi uma execução mesmo. Conforme o Beto, o homem entrou e atirou em seguida, não parece um assalto.
— Vamos ver se amanhã o Beto traz alguma informação.
— Ah, a notícia que ouvi, dizia também que a família desejava a liberação rápida do corpo, pois o desejo expresso dele era ser cremado. Todavia, a polícia informou que não liberará o corpo antes da primeira fase das investigações.
— Isso é praxe, Genô. A perícia não libera mesmo até algum resultado conclusivo do exame do corpo.
O assassinato do doutor Lúcio monopolizou todas as atenções do grupo naquela sexta-feira. Todos chegaram para a reunião com ares de investigadores experientes e expressavam suas opiniões “conclusivas”…
— O homem foi executado sumariamente, pessoal, e foi premeditado, portanto, deve estar relacionado a algo dos seus negócios ou seus pacientes…Carlão abre os debates.
— É uma possibilidade, mas e se foi um assalto que acabou dando errado, pois é sabido que o homem era milionário e possuía valores no consultório… responde Alemão.
— Está claro que foi uma vingança, da forma como foi morto. A polícia deveria investigar seus pacientes e também seus amigos ou inimigos próximos…
— Creio que a polícia não descarta nenhuma hipótese, Henrique, como li no jornal, inclusive devem incluir também a possibilidade de ter sido passional… diz Japa.
— Isso acho difícil, Japa, pois noticiaram que a esposa dele estava em Nova York e quando soube, voltou para cá, muito abalada, para cuidar das tratativas do enterro;
Beto e Jacinto eram os únicos que não expressavam suas opiniões e pareciam divertirem-se com o alvoroço que aquele assunto causava na mesa.
Jacinto toma a palavra.
— Calma, pessoal, não se esqueçam que temos um amigo policial aqui que trouxe informações importantes sobre o caso, vamos parar com o tumulto e ouvi-lo…
— Só soube deste caso na quarta pela manhã, quando o Jacinto me ligou. Como já sabem, o crime ocorreu aqui perto e foi atendido pelo distrito daqui, portanto, fora da minha jurisdição. Mas, como ele disse que se tratava de um cliente do boteco, me interessei e, como tenho um colega nessa delegacia, com quem troco informações, dei uma passada lá ontem, quando acabou me passando detalhes sobre o caso, que nem foram divulgados ainda.
— Muito obrigado por fazer isso, Beto. Ele não era uma pessoa íntima nossa, mas era uma pessoa que conquistou nossa admiração desde o primeiro dia em que o vimos. Frequentava o nosso boteco quando podia e nos causou muita comoção quando soubemos de sua morte.
— Faz parte do meu trabalho, Jacinto, e, quando vi a sua foto, lembro de o ter visto por aqui, sim. E, claro, prometi ao Jardim que o auxiliaria em qualquer coisa que precisasse nas diligências.
Nessa altura, a curiosidade de todos era total…
— E aí, Beto, a polícia já tem alguma pista, algum suspeito?
— Estão no início das investigações, Henrique, mas vou explicar tudo o que apurei lá:
— A preocupação deles, no momento, é preservar e proteger a testemunha, a assistente do médico, a única pessoa que poderá dar alguma informação sobre o assassino. Vazaram para a imprensa que ela não havia visto nada, para evitar qualquer possível retaliação contra ela. Mas, ela deve ter visto, sim, pois também dei uma passada com o Jardim no consultório e notei que ele tem uma porta de acesso envidraçada, que permanece travada, onde qualquer paciente que chega tem que pedir acesso à assistente, que então, destrava a porta.
— No depoimento dela, relatou que o doutor aguardava um último paciente e quando viu aquele homem na porta, destravou sem pensar. Não estranhou que ele estava de máscara, igual a que todos estão usando devido à pandemia.
— Assim que entrou, passou direto por ela e acessou a porta do consultório e em seguida ouviu os tiros, quando se apavorou e fugiu para o banheiro. Disse que ficou encolhida, assombrada com a possibilidade dele vir atrás dela. Demorou alguns minutos e quando saiu correu para a sala do doutor e o viu sentado na poltrona com manchas de sangue no peito.
— Ela conseguiu lembrar-se de mais algum detalhe do homem, Beto?
— Sim, Alemão, o Jardim é um bom profissional e disse que usou um artifício que determinou com precisão a altura do assassino. Colocou em sequência alguns homens diante da porta de vidro do consultório para que ela escolhesse o mais próximo possível do que tinha visto. Sabiam, agora, que se tratava de um homem com 1,82 m, magro, mas parecia encorpado, cabelo ruivo cortado à escovinha, sobrancelhas grossas, que portava um sobretudo escuro e com aparência de jovem.
— E como esse elemento conseguiu fugir rápido de lá, Beto?… esse prédio não tem nenhum sistema de segurança?
— Tem, sim, porém funciona melhor durante todo o dia, mas o doutor era o último a sair, pois atendia clientes até às 20:00 h, e raramente saía antes das 21:00 h e, nesse horário, geralmente ficava apenas um ou dois atendentes na portaria. Estes, quando interrogados, não acrescentaram muita coisa… apenas que viram um homem sair calmamente, contornar o jardim e se dirigir à calçada.
— Caramba, Beto, parece que é um assassino frio, meticuloso, hein?…
— Tudo indica que sim, e, também um detalhe que chamou a atenção do Jardim, foi a forma da execução. O assassino disparou apenas dois tiros certeiros no coração, com poucos milímetros um do outro. Isso indica precisão e certeza da morte da vítima. Geralmente, quando se trata de execução, a vítima é invariavelmente alvejada na cabeça.
— Já penso em um matador profissional, Beto, como aqueles que a gente vê nos filmes…
— Ah, ah, pessoal, eles estão apenas no início das investigações, falta muita coisa ainda a ser apurada, como, por exemplo, a gravação dos vídeos da portaria, não sabem se existe gravação naquele horário, se houver, poderia fornecer uma imagem do homem…
— Enfim, estão apenas com três dias de investigações. Nos próximos dias elas deverão avançar bastante e talvez surja algum indício importante. Prometi ao Jardim que colaboraria no que fosse preciso, assim vou estar a par do que acontecer e, na nossa reunião de sexta-feira próxima, quem sabe, teremos algumas conclusões…
Carlão levanta sua caneca de chopp e propõe um brinde ao doutor Lúcio…
— Vamos fazer um brinde, sim, meus amigos, mas não com chopp, vamos homenageá-lo com a única bebida que ele vinha tomar aqui no boteco.
Jacinto faz um sinal para um dos garçons e pede que traga a garrafa do seu melhor whisky, o favorito do doutor Lúcio.
Em segundos, o garçon retorna, trazendo uma garrafa do Royal Salute, vinte e hum anos.
— Agora, sim, pessoal, vamos esvaziar essa garrafa pelo doutor Lúcio!…
FIM