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Sinopse

A omissão e a negligência com que vêm sendo tratados os componentes primordiais da natureza, de sua biodiversidade, dos solos e da água, do ar e das florestas, estão provocando danos responsáveis por mudanças consideráveis em nosso meio ambiente.

O que esperar do futuro, se não forem tomadas ações efetivas para impedir o colapso que certamente virá?

A subida no nível do mar bate recordes a cada período.

Queima de combustíveis fósseis, emissões da indústria, desmatamentos e queimadas contribuem enormemente para o aquecimento global. Se não forem diminuídas ou freadas essas emissões de CO2, provocaremos em curto espaço de tempo condições irreversíveis para o aumento sistemático do aquecimento global com suas terríveis consequências.

Esta é uma narrativa imaginária de um possível cenário do nosso futuro…

A Herança de Cassandra

Uma onda de entusiasmo e excitação alastrou-se por todo o planeta com as notícias da realização da conferência mundial do meio ambiente.

Vinha sendo aguardada como um evento especial, que comemoraria o centenário da realização da primeira conferência em mil, novecentos e setenta e dois. E vinha cercado de um significado simbólico, porque a sede escolhida foi a cidade de Estocolmo, a mesma que sediou a primeira e por ser a capital de um país completamente mudado pelas profundas alterações climáticas por que passou o nosso planeta neste século.

Antes, havia regiões na Suécia em que o Sol nunca se punha em boa parte do ano e jamais nascia no restante. Sua capital, Estocolmo, nesses períodos, tinha dias com mais de dezoito horas de duração e outros tantos com apenas seis horas.

As catástrofes climáticas o transformaram num país tropical de praias aprazíveis.

A descrença popular com as medidas ineficazes tomadas pelas conferências nos últimos cem anos, atingira o ápice da frustração e descontentamento com os tratados de crescimento sustentável celebrados e suas metas jamais cumpridas.

Todavia, todos os meios de comunicação alardeavam que desta vez, tudo seria diferente. E teria que ser, pois os impactos ao meio ambiente ocorridos neste último século, mudaram o modo de vida na Terra e custaram a vida de milhões de pessoas e a extinção de milhares de espécies que desequilibraram importantes ecossistemas.

Cassandra não conseguia esconder sua euforia a partir do momento em que foi comunicada pelo conselho de organização da “Grande Conferência Mundial do Meio Ambiente” comemorativa dos cem anos, de que havia sido escolhida para presidi-la, como Secretária Geral.

Seu contentamento era ainda maior porque ela seria realizada em sua cidade natal, a histórica Estocolmo que fora a sede da primeira.

Sua indicação transcorrera da forma mais serena dos últimos anos, talvez por ser ela, Cassandra Elisabeth Ohlsson, PHD, Mestre e Doutora graduada em Ciências Ecológicas, reconhecidamente uma sumidade nos meios acadêmicos na área do clima e uma renomada cientista, legítima representante de uma linhagem de notáveis pesquisadores da área do meio ambiente.

Em suas palestras acadêmicas, quase sempre menciona com orgulho o nome de seu bisavô Gustaf, que desempenhou papel importante naquela primeira “Conferência Mundial do Meio Ambiente”, realizada na cidade, hoje irreconhecível por ele.

“Não vai ser fácil, tenho que preparar-me muito bem. Estudar a fundo todos os tratados precedentes de crescimento sustentável celebrados, porque sei que serão comentados e uma vez mais, todos os países procurarão estabelecer as mesmas metas e as mesmas alternativas para a prevenção de novos impactos ao meio ambiente”.

Cassandra era realista e entendia que enfrentaria a negação e a resistência das grandes potências mundiais que só assinavam promessas e compromissos que nunca se transformavam em ações concretas.

Propor a busca por meios menos poluentes ao meio ambiente nos processos industriais, ou o emprego efetivo de energias alternativas sustentáveis, ou ainda a substituição dos combustíveis fósseis, ou então pesquisar meios mais eficientes de utilizá-los eram os pontos nevrálgicos que sempre causavam os debates mais acalorados das conferências.

Nem mesmo o apelo financeiro de outras tantas conferências realizadas no passado, comprovando que os desastres climáticos causados pela inércia na tomada de ações concretas vinham causando bilhões de prejuízos, foi suficiente para mudar o rumo das negociações.

Prejuízos, principalmente aos países mais pobres e em desenvolvimento, que causavam perdas crescentes da produção agrícola, com a escassez hídrica devido ao ressecamento de lagos e rios, a desertificação de imensas áreas antes verdes e outros desastres ainda maiores com o aumento das nevascas, tufões, furacões, maremotos, transbordamento de rios e inundações.

A poluição industrial e doméstica cobre as grandes cidades com névoas cinzentas de poluentes causadores de epidemias constantes de todo tipo de doenças respiratórias.

O gás-estufa gerado destrói progressivamente a camada de ozônio, diminuindo o bloqueio da temível radiação ultravioleta (UV), capaz de aniquilar qualquer tipo de vida na superfície do planeta.

Apesar disso, na visão dos grandes líderes dos principais polos poluidores, todos esses “infortúnios” ainda são compensados pelos proveitos advindos do uso de combustíveis fósseis.

O empenho na busca de ações eficazes para frear essa marcha do Planeta em direção a um final previsível era sempre adiado, substituído por realizações paliativas, habitualmente alardeadas como atitudes “geniais”.

Uma delas foi a criação, há décadas, pelos países ricos, de um “fundo garantidor” com bilhões em reservas, destinado a cobrir os prejuízos causados pelas tragédias climáticas sofridas pelos países mais pobres e subdesenvolvidos.

Façanha de efeito questionável, pois muitos desses países, dominados por governos inescrupulosos acabam torcendo pelas calamidades, para lançarem mão dos bilhões do fundo.

Cassandra cercou-se de uma equipe de pesquisadores que procuravam auxiliá-la na composição do grande discurso de abertura, que estava designada a fazer.

— Terá uma missão dificílima, doutora Cassandra!

— Sei disso, Karin, mas tenho que tentar demonstrar para todos que o nosso mundo está se findando em meio aos impactos ao meio ambiente que vimos causando.

— Como convencê-los da substituição dos combustíveis fósseis, por exemplo, se a cada ano surgem relatos de novas jazidas encontradas nos desertos, nos fundos dos mares e agora na Nova Antártida? Contradizendo notícias de mais de cinquenta anos atrás, informando que as reservas mundiais durariam apenas para quatro ou cinco décadas?

— É fato, Henric, mas poderemos enfatizar a busca por meios mais eficientes na utilização desses combustíveis fósseis, desenvolvendo derivados menos agressivos à natureza…

— Poderemos, sim, doutora, mas não só buscar desenvolvê-los. O mais urgente agora, é procurar refrear a produção do principal deles, o plástico, que inundou nossos rios, represas e o nosso mar, matando peixes, repteis e eliminando grandes áreas de fitoplanctons responsáveis por grande parte do oxigênio que consumimos.

— É um ponto importante, sim, Karin, mas vou procurar impactá-los também com notícias de aparência “menos grave”, como essa recentemente anunciada de que o planeta ultrapassou os dez bilhões de habitantes.

— Sabemos que é um crescimento perigoso da população mundial que desencadeia maior demanda por alimentos, combustíveis e produtos industriais, gerando maiores áreas de cultivo, de pastagens, ocasionando mais emissões de gases de efeito estufa, mais emissões de CO₂…

— Tudo isso, Henric, vem causando mudanças devastadoras no meio ambiente global, pois são causadoras da paulatina destruição da camada de ozônio de nossa estratosfera, do temível efeito estufa, que aumenta a temperatura do planeta, contribuindo para a escassez de alimentos e riscos à saúde humana com a perigosa radiação de UV, como a que somos bombardeados agora.

— Tudo isso é sabido, doutora Cassandra, mas também sabemos que falar em controles de população, mesmo hoje, em dois mil e setenta e dois, ainda é considerado tabu, assunto proibido, sempre derivando para a área da ética, da moral e da religião, quando na realidade é apenas uma questão de cultura e educação, pois onde ocorrem os maiores índices de aumento populacional? Exatamente entre os países mais pobres e em desenvolvimento, os mais carentes daqueles dois preceitos.

— Tem toda razão, Henric, mas é inegável que houve alguma evolução, com o aumento da liberdade de decisão da mulher, no caso dos abortos e de melhores e mais eficazes meios de planejamento familiar… não fosse por isso, hoje é certo que já teríamos ultrapassado os doze bilhões, população que sabemos, provocaria o colapso do meio ambiente e poria em risco a sobrevivência de nossa espécie…

— Doutora Cassandra, esta conferência não poderá tolerar mais uma vez que os governantes se comportem como avestruzes, enfiando suas cabeças na areia, fingindo e torcendo para que a natureza se recupere sozinha. Afinal, que planeta deixaremos para as gerações futuras?

— Concordo plenamente, Karin…

Cassandra procurava se preparar para o trabalho hercúleo que tinha pela frente. Presidir e encaminhar os debates na direção da adoção realmente efetiva de ações concretas desta vez, ou, no seu pensamento, haveria poucas chances mais de executá-las.

Relembraria as catástrofes sofridas nas últimas décadas que causaram impactos profundos que mudaram o modo de vida na Terra e custaram a vida de milhões de pessoas!

Como o derretimento praticamente total da Antártida, que provocou o desastre do desequilíbrio de alguns graus no eixo de rotação do Planeta, mas suficiente para produzir inversões térmicas avassaladoras, mudar a topografia litorânea da maioria dos países e a perda de imensas áreas verdes, como a Amazônia, invadida pelo Atlântico, ficando na maior parte submersa!

Vaticinaria que o Ártico estava entrando num processo semelhante e o resultado disso poderia trazer consequências imprevisíveis para todo o Planeta.

Faria de tudo para que aqueles governantes insensíveis tomassem consciência do desastre que produzimos e levassem a sério essa “centésima” conferência mundial do meio ambiente…

Entretanto, Cassandra jamais imaginaria que poderia estar herdando o mesmo destino de sua famosa ancestral mitológica…

 

****************

 

Enfim, chega o grande dia. O discurso inaugural preparado com todo esmero por ela e sua equipe de cientistas seria lido logo mais na abertura da Conferência e transmitido pela rede mundial de difusão.

Um grande palco foi preparado para esse evento especial e decidiu-se que seria ao ar livre, no parque central da cidade, sob um mormaço de trinta e oito graus e da névoa cinzenta que cobria tudo.

Cassandra vai caminhando resoluta em direção ao centro do palco preparado para o discurso de abertura, aplaudida por milhares de pessoas, durante vários minutos.

A Secretária Geral da Centésima Grande Conferência Mundial do Meio Ambiente preparou-se com toda a pompa e circunstância que a liturgia do seu cargo exigia…

Ela ajusta a máscara antigases e ajeita a capa protetora de raios UV, limpa a garganta, espera os últimos aplausos cessarem e começa o grande discurso:

— Congratulo-me com todos os líderes das Nações Remanescentes que aqui compareceram, para firmar mais este compromisso inabalável, que vamos celebrar a partir de hoje e que será o instrumento que salvará definitivamente o nosso Planeta, ou o que resta dele…

Neste ponto, é interrompida pela plateia que a aplaude por vários minutos…

Cassandra continua o seu discurso, agora bastante alterado pelos grandes líderes globais, e, depois de uma hora e meia de promessas diversas, começa a listar as metas primordiais e, “inéditas”, as quais são:

  • Reduzir a emissão de dióxido de carbono e metano em 30% nos próximos vinte e cinco anos…
  • Reduzir o aquecimento global em pelo menos 2% até a virada do século…
  • Criação de um fundo especial de ajuda às nações mais pobres e em desenvolvimento destinado à aquisição de máscaras antigases e capas protetoras para raios UV para distribuição…

 

Não conseguiu terminar a frase. Uma algazarra infernal começa a se alastrar e toma conta de toda a multidão, já afetada por aquele mormaço inclemente, que começa a gritar em coro:

— Chega de mentiras!

— Chega de promessas!

— Queremos ações concretas!

A exaltação atinge o auge e se transforma em ações de vandalismo. O que tinham nas mãos era arremessado contra o palco.

A Secretária Geral assim como todos os dignitários presentes foram retirados às pressas do local pelas forças de segurança, logo depois invadido e depredado pela multidão enfurecida.

Cumpriu-se assim o fado.

Mas, afinal, quem foi essa ancestral mitológica de Cassandra?

Remonta à guerra de Troia. Ela foi um dos dezenove filhos do rei Príamo e tornou-se uma jovem formosa, que logo chamou a atenção do Deus Apolo, que se apaixonou por ela. Porém, ela sempre se negava em se tornar sua mulher, apesar das inúmeras recompensas que ele oferecia.

Todavia, Apolo era ardiloso e logo lhe propôs algo que sabia irresistível e acabaria com sua resistência.

Daria a ela o dom da clarividência, o que a transformaria numa sacerdotisa idolatrada. Cassandra imediatamente aceitou, assumindo aquele dom desejado por todos os humanos.

Entretanto, mais uma vez, recusou-se a dormir com Apolo. Este, enfurecido, não podendo retroceder com sua palavra, lançou lhe uma maldição:

— Terá o dom do vaticínio, mas, em contrapartida, ninguém acreditará nas suas previsões.

Quando seu pai, o rei Príamo, a consultou se Troia ganharia aquela guerra contra os gregos, que já durava dez anos, ela vaticinou que seriam massacrados, Troia seria destruída, sua família toda morta ou feita prisioneira e pediu que o cavalo de madeira que acabaram de receber de presente fosse imediatamente destruído.

— Só pode estar louca, minha filha! Temos o exército mais poderoso e os guerreiros mais valorosos como Heitor e Páris, seus irmãos…

Totalmente desacreditada, ninguém levou a sério seus vaticínios e Troia foi vencida e destruída pelos gregos.

 

***************

 

No veículo blindado que transportava alguns dos líderes importantes da Conferência, Cassandra ia ouvindo:

— Foi um erro! Sempre fui contra a realização disso em público…

— Deveríamos ter feito como sempre, num ambiente fechado, controlado, com acesso restrito…

— Concordo, afinal, nós é que decidimos tudo, não dependemos de nenhuma aprovação do povo…

Muito distante dali, em algum ponto do Círculo Polar Ártico, um estrondo assustador ecoa na imensidão das geleiras que ainda restam. Foi uma descomunal massa de gelo que se desprendeu e afundou no mar, voltando em seguida à superfície, mostrando apenas uma pequena fração do que estava submerso.

Logo começa sua marcha implacável rumo ao Atlântico, onde dará sua contribuição para alterar ainda mais a topografia litorânea do continente.

No entanto, isso pouco ou nada chamará a atenção daqueles líderes importantes, que, como sempre, só enxergarão mesmo, a parte emersa, a ponta do iceberg.

 

 FIM

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