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A Recompensa de Jesus

A tarde calorenta cedeu lugar a uma noite de Lua cheia, com uma claridade que projetava uma sombra no pátio da grande árvore do estacionamento. 

Jesus permaneceu  um instante imóvel, passeando o olhar pela fileira de carros, todos alinhados conforme sua orientação.  Sem ele, aquele pátio entraria em colapso num dia como esse, uma sexta-feira de tempo agradável e com a euforia normal que antecede um feriado prolongado. Esperava a chegada de muitos mais e supunha se teria que abrir aquele espaço extra que sempre mantinha reservado.

Conhecia a maioria dos carros dos clientes, mas não reconheceu aquele que acabava de acessar a entrada do estacionamento. Sinalizou logo para que se aproximasse e apontou a vaga que deveria ocupar.  Logo distinguiu o logotipo com as quatro argolas da Audi. Era prateado e reluzia com a luz do luar.

Em seguida, executa uma cortesia que só fazia quando percebia serem mulheres conduzindo.  Abre cortesmente a porta do passageiro. Uma senhora elegantemente trajada sai com desenvoltura do veículo e agradece com um gesto amável para Jesus.  A motorista, uma bela jovem, contorna o carro e vem ao seu encontro e, de braços dados, encaminham-se para a entrada do boteco.

Ele teve a nítida impressão de já ter visto aquele rosto, mas não conseguia lembrar de onde…

Observando o logotipo inconfundível do “boteco do Jacinto” num painel logo acima da entrada principal, a senhora virou-se para a jovem comentando…

— Jamais estive em um “boteco” em toda a minha vida, Laura. Vai ser a primeira vez que faço isso…

— Ora, mãe, este não é um boteco como os outros. Veja este bairro onde estamos, é de classe média alta e note a categoria do estabelecimento, é de outro nível. Eu já tive oportunidade de visitar nas minhas baladas com meus amigos, alguns barzinhos e botecos até famosos, mas confesso que nenhum tinha a categoria deste aqui… até andei pesquisando sobre ele na internet e verifiquei que possui uma gastronomia bastante admirada pelos seus clientes. Estou com vontade de experimentar alguma coisa após conversarmos com o senhor Fernando.

— Não sei se vamos ter tempo para isso, Laura. Lembre-se que estamos aqui para o recital do seu irmão, que começa às 22:00Hs, temos menos de duas horas para conversar tudo aqui e ir para lá, seu pai está com ele e vai reclamar bastante se chegarmos atrasadas. E ademais, estas roupas que estamos vestindo não combinam bem com o ambiente descontraído do boteco, não acha?… vamos deixar para outro dia e garanto que seu pai vai querer vir também.

Um solícito garçom abre as duas folhas da porta envidraçada e com um gesto cortês as convida para entrar.

— Mesa para duas pessoas, senhoras?

— Muito obrigada, mas procuramos pelo senhor Fernando, ele está?

— Está, sim, senhoras, eu as acompanho até ele.

Fernando encontrava-se no balcão de onde coordenava os trabalhos. Notou a aproximação do garçom com as duas senhoras. Ele era bom fisionomista, sabia que já as tinha visto antes, mas não se lembrou de imediato, somente quando chegaram bem próximo é que as reconheceu. Aquelas roupas elegantes faziam toda a diferença. Contorna o balcão e vem ao encontro delas.

— Boa noite, senhor Fernando, lembra-se de nós?

— Com certeza, dona Gertrudes,  nos conhecemos há mais de um ano, mas não posso esquecer daquele dia em que veio buscar seu papagaio…

— Exato, senhor Fernando, faz pouco mais de um ano. Aquele dia me marcou muito também… o reencontro com o meu “Zico”, que julgava ter perdido para sempre e me emocionou muito também ao ver a maneira como ele foi tratado aqui por todos vocês, particularmente pelo seu funcionário Jesus.

— Sim, ele já considerava que ficaria com o Zico definitivamente e sentiu muito quando da separação.

— Senti muito isso e então prometi que lhe traria um filhote do Zico, lembra-se?

— Lembro, sim, mas acho que ele até já se esqueceu disso.

— Acho que sim, pois nos  vimos  no estacionamento e ele não me reconheceu. Porém, eu não esqueci e estou aqui justamente para isso.  Há três dias, nós conversamos por telefone, quando eu lhe pedi os dados do seu funcionário. Precisava deles, pois tinha de  fazer tudo de maneira absolutamente correta. Sabe que para possuir uma ave silvestre de pedigree, é necessário ter um cadastro no IBAMA e uma licença como criador amadorista, além de ter comprovação da sua origem, que só é aceita pelo órgão se vier de um criadouro autorizado por ele.

— Sim, dona Gertrudes, já li sobre isso. Quem manter algum animal silvestre em cativeiro sem a devida autorização, fica sujeito às medidas legais cabíveis, além de multa e em alguns casos até detenção, não é isso?

— Isso mesmo, a única coisa que pode ser feita nessas situações é a devolução do animal para que ele possa ser remanejado para um centro de reabilitação, um zoológico ou para um criadouro regulamentado. E saiba, senhor Fernando, o nosso criadouro lá na serra é reconhecido pelo IBAMA como um dos melhores da América Latina, onde dispomos de um Centro de Reabilitação de Animais Silvestres (CRAS) e de um Centro de Triagem de Animais Silvestres (CETAS).

— Entende agora, por que tenho que fazer tudo rigorosamente conforme o regulamento?

— Claro, dona Gertrudes, e valorizo muito esse seu trabalho…

Laura estende uma pasta de cor verde para Fernando.

— Aí dentro, senhor Fernando, estão o cadastro de Jesus no IBAMA, a autorização como criador amadorista além dos certificados de origem da ave. Também estão aí todos os procedimentos que julgamos necessários para manter a ave saudável, como cuidados na alimentação, o espaço apropriado do viveiro, vacinas periódicas,  bem como uma série de recomendações para manter o bichinho bem animado… preferimos aguardar um ano para que o filhote trocasse de vez suas penas e chegasse na idade em que pode começar a ser treinado.

— Aliás, senhor Fernando, por falar em treinamento, quando estive aqui, soube que o Jesus é torcedor de um certo time muito popular e nosso treinador preparou uma surpresa para ele. Não vou dizer agora.

— Minha nossa!… vai ser uma emoção e tanto para ele…

— Pode avisá-lo, senhor Fernando, que o filhote será trazido provavelmente na próxima segunda-feira, feriado, pelo meu filho Maurício e pela Laura aqui, da forma correta, sem estresse para o papagaio. Hoje, aqui estamos para entregar-lhe os documentos e em seguida teremos que cumprir um compromisso social imperdível, por isso não podemos nos demorar. Mas, garanto que em breve retornaremos para curtir de acordo, este espaço muito agradável que têm aqui e também para rever nosso bichinho…

— Fiquem convidadas desde já. Serão nossas clientes vip…

— Muito obrigada, senhor Fernando, mas onde está seu pai, ele foi muito gentil conosco naquele dia… é Jacinto, não é, o nome dele…

— Hoje é sexta-feira, dona Gertrudes, e como de costume, é o seu dia de folga e ele se reúne com seus amigos numa mesa reservada, vamos até lá, ele vai gostar de revê-las…

A animação corria solta na mesa dos amigos, mas assim que Jacinto percebe a aproximação de Fernando com aquelas duas senhoras elegantemente vestidas, paralisa o sorriso, adotando uma postura mais sóbria. De imediato, todos notam a reação dele e se voltam para olhar na mesma direção.

— Ih, Jacinto, acho que é alguma fiscalização. Vamos ser autuados com certeza…

— A esta hora, só pode ser fiscalização da prefeitura…

— Calma, Carlão, vamos esperar as moças chegarem.

Finalmente, Jacinto reconhece as duas mulheres, levanta-se e aguarda a aproximação.

— Pai, lembra-se destas senhoras?

— Claro, Fernando, como esquecer a dona do papagaio?… prazer em revê-la, dona Gertrudes…

E estende a mão às duas.

— É uma satisfação recebê-las aqui…

Fernando já havia acomodado mais duas cadeiras à mesa.

— Sentem-se, senhoras, faço questão de apresentá-las aos meus amigos…

— Não poderemos nos demorar, senhor Jacinto, pois temos, logo mais, um compromisso que não poderemos deixar de comparecer.

Jacinto faz a apresentação formal das duas…

— Nós sabemos toda a história do papagaio, dona Gertrudes. Da odisseia que ele deve ter vivido até chegar aqui… diz Henrique.

— Sim, ele deve ter sofrido bastante no meio daquela tempestade, mas teve a sorte de parar aqui, a mais de cem quilômetros de casa onde, felizmente, foi acolhido por essas pessoas bondosas…

Fernando passa ao pai a volumosa pasta verde.

— Veja, pai, a dona Gertrudes providenciou tudo, está tudo aí na pasta, até as instruções de como tratar o bichinho…

— Jacinto folheia os documentos e Carlão não contém sua curiosidade.

— Puxa, é um manual extenso, não fazia ideia de que era tão complicado criar um papagaio… e é muito dispendioso?.

— Se for para criar conforme as regras, que é como fazemos, senhor…

— Carlão…

— Carlão, não é muito difícil, não, mas requer cuidados especiais, bem mais do que cuidar de um cão ou um gato… e é, sim, um tanto dispendioso…

— O papagaio é uma ave gregária e gosta de ter sempre pessoas por perto, principalmente o seu tratador habitual, com quem cria vínculos afetivos muito fortes. Não se pode deixá-lo abandonado num canto, pois ele pode sentir solidão e entrar facilmente em depressão e até definhar. Eles precisam de brinquedos e que se brinque com eles constantemente e também o treine… bem, está tudo aí nessa pasta, senhor Jacinto.

— Esta foto na capa, é dele?

— Não, mas é de uma ave exótica da mesma linhagem dele, mesma espécie.

— Sei, dona Gertrudes, que uma ave com essa procedência tem um preço bem significativo… quanto custaria se fossemos comprar?

— Todos os irmãos dele já foram comercializados a dez mil reais cada.

— Muito bem, dona Gertrudes, saiba que iremos cuidar muito bem dele aqui. Já sabe que o principal cuidador será o Jesus e nós vamos providenciar todo o equipamento para receber o louro, bem como tudo que for necessário conforme o que descreveu aqui… Jacinto dá um toque na pasta.

— Tenho certeza disso, senhor Jacinto… bem, obrigado pela recepção, mas agora temos mesmo que ir, mas em breve, até já avisei o senhor Fernando aqui, deveremos voltar para aí, sim, curtir este seu “boteco”…

— Foi um prazer recebê-las e ficamos muito agradecidos pelo que estão fazendo… e, quando quiserem, teremos prazer em recepcioná-las…

Fazendo um gesto para todos na mesa e estendendo a mão para Jacinto, as duas se retiram, acompanhadas por Fernando.

E o louro passa a ser o assunto principal na mesa, com a pasta verde passada de mãos em mãos.

— Mas que bichinho caro, hein, Jacinto?

— É, Beto, e bem dispendioso também, mas ele terá um tratamento digno aqui no boteco e se tornará o nosso Mascote.

Jacinto recebe a pasta, depois dela circular pela mesa.

— A documentação está perfeita, agora só falta chamar o Jesus e dar-lhe a notícia… ficará exultante.

— E quando chegará o papagaio?

— Ela disse que os seus filhos o trarão na segunda-feira…

Era certo que Carlão tramava alguma coisa.

— Puxa, Jacinto, nós poderíamos fazer uma recepção em grande estilo para o louro e uma data inesquecível para o Jesus.

— E o que está pensando em fazer, Carlão?

Carlão expõe o seu plano e combina todos os detalhes com os demais.

O contentamento e o entusiasmo de Jesus acabou por contagiar a todos no boteco, fazendo com que os colegas se sentissem envolvidos de alguma forma com a chegada do louro.

Em meio ao movimentado final de semana, sempre achava algum intervalo para ir conferir o novo equipamento providenciado por Jacinto e Fernando e os vários presentinhos oferecidos pelos funcionários. Era uma profusão de bolinhas, balanços, poleiros, bebedouros e comedouros, pacotes de ração e de sementes…

O feriado teve um amanhecer esplêndido, com o Sol brilhante, céu azul e uma brisa cálida prenunciando mais um dia de calor intenso.    

Jesus circulava ansioso pelo pátio aguardando a tão esperada chegada do louro e já pensando em mil nomes possíveis para batizá-lo. Teve uma ideia.

“Vou pedir sugestões de todos os colegas”… e vai em busca de papel e lápis para as anotações.

A manhã caminhava para o seu término quando aquela caminhonete verde oliva entrou no pátio do estacionamento. Àquela hora, a movimentação de veículos ali era pequena, salvo pelos dos fornecedores habituais do boteco, que utilizavam a entrada lateral de serviços.

Laura notou a ausência de Jesus, sempre por ali.

— Não estou vendo aquele rapaz, Maurício, deve estar em horário de almoço. Siga e estacione lá na frente, perto da entrada principal… tem espaço lá.

— Estou vendo, Laura, este furgão é grande, mas tem bastante espaço lá para manobrar…

Jesus estava entretido em coletar as sugestões dos colegas. Mas, Fernando não deixa de detectar pelo sistema de câmeras externas, a chegada daquele veículo diferente e, quando identifica a imagem de Laura, avisa Genoveva que folheava uma revista numa das mesas do salão.

— Vamos lá, Genô, nosso Mascote acabou de chegar, avise o Jesus…

— Vou chamá-lo, está lá na cozinha conversando com o pessoal.

— E o pai, Fernando?

— Falei com ele agora há pouco, já vai descer…

Fernando dirige-se rápido em direção à entrada principal e encontra Laura e Maurício no primeiro degrau da escada.

— Bom dia, senhor Fernando, íamos procurá-lo…

Laura estende a mão e completa.

— Este é o meu irmão Maurício…

Fernando cumprimenta efusivamente os dois.

— É um prazer conhecê-lo, senhor Fernando, Laura só tece elogios a vocês e ao seu boteco… e agora, vejo que até foi modesta…

— Ora, o prazer é nosso em recebê-los aqui, Maurício. Mas, vamos entrar, tomar algo refrescante depois dessa viagem e com esse calor…

— Não queremos incomodar, mas, na verdade, estou com uma sede danada. Embora esse “caminhão” aí,  (Laura faz um sinal com o polegar apontando para trás), tenha ar condicionado, passamos um pouco de calor, com esse Sol abrasador…

— Ah, então vocês irão apreciar muito um suco geladinho… vamos.

Os três entram no salão e se deparam com Genoveva e Jesus que vinham apressados em sua direção.

Genoveva conhecia Laura e a abraça com carinho.

— É um prazer revê-la, Laura… nem imagina o quanto você era esperada por esse moço aqui… e aponta para Jesus.

— É verdade, dona Laura, desde que o senhor Jacinto me deu a notícia na sexta-feira, quase que nem durmo de tanta ansiedade.

— Ah, ah, muito bem, Jesus. O louro já está aqui, pode se tranquilizar agora. Logo mais vai poder conhecê-lo e começar sua vida com ele e garanto que será muito longa, pois essa espécie pode chegar facilmente aos sessenta anos!!.

Jesus tremia de impaciência e curiosidade.

— Ele está no carro, está bem?…

— Sim, Jesus, ele veio muito bem na viagem, confortável e sem estresse. Está tranquilo, logo logo vamos vê-lo… agora, o que mais quero é tomar algo bem gelado…

Fernando os acomoda num das mesas próximas ao balcão, enquanto Genoveva e Laura se dirigem ao toilete.

Enquanto abraçava Laura, Genoveva e Maurício cruzaram rapidamente os olhares, mas o suficiente para desencadear um sentimento instantâneo  e intenso de atração mútua. Inexplicável para ela, sentir algo assim por alguém que acabava de conhecer.

Foi como se uma centelha elétrica percorresse o seu corpo. Maurício estranhou aquela sensação. Jamais havia sentido algo assim por nenhuma outra pessoa, e ele era intensamente assediado no seu ambiente. Era um jovem sensível,  um músico talentoso que atingira um alto grau de virtuosismo com seu instrumento, o violino, e estava prestes a iniciar uma nova etapa em sua carreira, iria para Nova York, onde o curso de regência o esperava.

Entendia que era muito difícil um amor verdadeiro e duradouro iniciar assim, à primeira vista. Há algum tempo, saíra de um relacionamento que se iniciara dessa forma e foi se desvanecendo ao longo do tempo, até chegar a um final difícil e desgastante. Isso o amadureceu e o tornou mais experiente. Sabia que um amor verdadeiro requer o comprometimento de ambos para crescer e se fortalecer. Tinha plena consciência disso, todavia, não podia evitar o que sentia, uma  extrema e instantânea atração pela simpatia e simplicidade daquela moça que nunca vira na vida.

Genoveva e Laura voltavam do toilete conversando animadamente…

— Venha, Laura, vamos até o balcão, onde poderá escolher o suco de sua preferência, temos lá agora, um garçom de serviço que providenciará para nós…

— Obrigada, Genoveva, se tiver o de abacaxi com hortelã é esse que vou querer, e vou pedir dois, pois o Maurício é fã incondicional desse suco…

— Mas que coincidência, também aprecio muito esse suco, então serão três.

Fernando, Jesus e Mauricio tratavam dos últimos detalhes para a instalação do louro no seu novo habitat.

— Meu pai providenciou um viveiro bem amplo, Maurício, de conformidade com as instruções dadas pela sua mãe.  E o Jesus aqui, vai cuidar de todos os outros detalhes para a acomodação do bichinho, vai se sentir em casa…

—  Tenho certeza disso, Fernando. É uma ave muito esperta e está no ponto para iniciar seu treinamento. Nosso treinador já começou com alguma coisa, mas não podia progredir mais, pois o novo tratador é que deve fazer isso… e Maurício dá um tapinha nas costas de Jesus… está tudo lá no manual, Jesus.

— Uma das primeiras coisas é dar-lhe um nome e fazê-lo reconhecer esse nome.

As duas voltam à mesa e Genoveva ouve as instruções de Maurício e  nota o seu olhar de interesse.

— Vejo que está ficando “doutor” em papagaio, hein, Jesus…

— Que nada, dona Genoveva, tenho muito que aprender ainda, mas vou ser o melhor tratador do lourinho…

O garçom se aproxima e coloca os sucos gelados à frente de cada um. 

— O seu, senhor Fernando, é o de costume, limão-siciliano… e você, meu amigo Jesus, o que vai querer?

— Eu vou agora tomar uma água gelada com você lá, vamos…

— Também gosta desse suco, dona Genoveva?

— Meu Deus, “dona”?…Genoveva dá um sorriso encantador…

— Não liga não, Genoveva, meu irmão sempre foi muito formal e educado até demais… mas eu adoro esse jeito dele. Sabe, que logo ele vai ser um grande maestro?

— Maestro, Laura?

— Sim, maestro, dentro de dois meses, vai embarcar para Nova York onde fará um dos melhores cursos do mundo nessa área…

— Puxa!…meus Parabéns, “seu” Maurício, sei que é uma área muito difícil e deve exigir demais, precisa ter muito talento mesmo…

— Ah, ah, isso ele tem de sobra, Genoveva. Toca piano, flauta e violoncelo, mas é virtuose mesmo no violino… precisa vê-lo tocar…

— Ah, aha, aha, não reparem não, meus amigos, é que minha irmã aqui é uma “puxa-saco” de carteirinha…

Mauricio provoca o riso de todos na mesa.

— Bem, está tudo ótimo aqui, mas está na hora de instalarmos o louro e irmos, Laura. Lembre-se que mamãe nos incumbiu de mais três tarefas aqui na cidade antes de retornarmos, por isso viemos com esse furgão…

— Tem razão, Mauricio, é que me sinto tão bem aqui, que ficaria a tarde inteira distraída… vamos tratar de instalar o louro, então.

Olhando fixamente para Genoveva, Maurício levanta-se…

— Também sinto o mesmo, minha irmã, nunca havia sentido essa empatia que senti aqui hoje, gostaria muito de ficar mais e conhecê-los melhor, mas temos compromissos a cumprir. Mas, talvez não consiga embarcar, sem antes voltar aqui para revê-los…

Genoveva sabia a quem Mauricio estava se dirigindo…

— Espero que voltem, sim, será um grande prazer… diz.

Fernando sinaliza para Jesus no balcão e todos se dirigem em direção ao pátio.

O louro se instala facilmente naquele grande viveiro e começa rapidamente a fazer o reconhecimento de todos os seus pertences. Pula de um poleiro para o outro, depois para o balancim… exibia-se, sabendo que era o alvo da admiração de todos…

— Veja, Jesus, ele está prontinho para aprender tudo… deixamos para vocês essa tarefa, mas não resistimos e ensinamos somente uma coisa para ele…

Dizendo isso, Laura retira do bolso traseiro de sua calça, um lenço verde e abana para o papagaio, que para num poleiro e começa a gritar…

“Pôorrcoo”……”Pôorrcoo”

Boquiaberto, Jesus vai às lágrimas.

— Meu lourinho, meu lourinho… e chora copiosamente.

Jacinto acabara de descer e vem ao encontro deles. Cumprimenta Laura e esta faz a apresentação do irmão, que ele ainda não conhecia.

— Agradecemos muito a vocês, Laura e diga isso também à sua mãe. Esse gesto generoso dela vai ficar marcado para sempre em nossas lembranças… mas, porque Jesus está chorando assim?… é emoção?…

— Mostre a ele, Jesus…

Ele retira do bolso o lenço dado por Laura e balança para o louro, que começa a gritar novamente…

“Pôorrcoo”……”Pôorrcoo”…

E provoca novas lágrimas de Jesus.

Maurício consulta o relógio…

— Agora temos mesmo que ir, Laura, senão chegaremos à noite em casa…

— Mas eu vim aqui, justamente para convidá-los a almoçarem conosco…

— Ficará para outra vez, senhor Jacinto e tenho certeza que haverá mesmo essa “outra vez”, diz Maurício, olhando de relance para Genoveva.

— Obrigado, senhor Jacinto, mas temos que ir. Hoje é feriado, mas mamãe nos incumbiu de tarefas que teremos de executar ainda. Depois, comeremos alguma coisa na estrada… completa Laura.

Todos seguem conversando em direção ao furgão, onde se despedem.

Aquele dia calorento termina com o Sol se pondo no ocaso e a Lua, novamente cheia, se erguendo no horizonte. A escuridão se propaga, favorecendo o avistamento das estrelas, mas só enquanto a Lua ainda está baixa, pois quando ela se erguer mais alto, o brilho do seu luar vai ofuscar o pano de fundo das estrelas.

Jesus já estava a postos coordenando a chegada dos primeiros clientes.

Alemão e Henrique chegam juntos, logo seguidos por Carlão, Beto e Japa.

— Ué, mas hoje é segunda-feira, senhores… trocaram de dia, senhores?… brinca Jesus com Carlão…

— Ah, ah, é porque hoje é um dia especial, Jesus, vai ver, meu amigo…

O clima no boteco ainda estava ameno, somente a mesa dos amigos mostrava a animação de sempre.

— Jacinto, o louro se adaptou bem?

— Muito bem, pessoal, parece que sempre morou ali naquele viveiro e Jesus cuida dele o tempo todo.

— Já escolheram o nome?

— O Jesus está colhendo sugestões do pessoal, inclusive, gostaria de ouvir a de vocês também…

— Tem que ser um nome bem fácil, pessoal, um que ele não tenha dificuldade de aprender e repetir… diz Henrique.

Repentinamente o som agudo de uma sirene, bem próxima, invade o ambiente, atraindo o olhar de todos para as vidraças.

— É uma viatura policial que entrou no estacionamento e Jesus está gesticulando para estacionar numa vaga. Mas se veio apitando, é porque está em serviço… vamos lá, pessoal… alerta, Beto.

Na realidade, todos já previam do que se tratava. Jacinto acompanha todos para fora, sobraçando a pasta verde.

A viatura avançou alguns metros e parou diante de Jesus. Dois militares descem do veículo e se aproximam dele. Ao abrirem a porta, ele pode ler “Policia Militar – Batalhão de polícia Florestal” e um arrepio percorreu sua espinha…

— Boa noite, senhor. Sou o sargento Cabral e este é o tenente Fonseca. Estamos aqui em serviço, não numa visita social, por isso não vamos estacionar.

— Do que se trata, senhores, posso levá-los até o responsável…

— Estamos aqui numa missão de busca e apreensão, devido a uma denúncia de animal silvestre mantido em cativeiro.

Ao fundo ouvia-se nitidamente os gritos do louro, brincando com seus apetrechos…

Jesus estremeceu, queria responder, mas sua voz engasgou, começou a suar frio…

— Maass… sargento… que animal é esse… que estão… buscando?

— É exatamente essa ave que estamos ouvindo, objeto da denúncia anonima que recebemos,  um papagaio, que pelo que vemos, vocês estão mantendo aqui, em cativeiro, contra a lei, ou, por acaso o senhor tem a documentação legal dela?…

Jesus não tinha conhecimento da existência da pasta verde.

“Cretino… quem pode ter nos denunciado?… não temos nenhum vizinho tão próximo assim que se incomodasse… só se foi aquele mecânico da esquina… desgraçado… se foi vou acertar as contas com ele logo logo”…

Jesus estava passado. Sua indignação o paralisava, só de pensar na possibilidade de perder novamente o papagaio…

— Mas, sargento, ele não é um animal silvestre não… ele veio de um grande viveiro de aves, tem uma origem…

O oficial intervém.

— Senhor, se não possuírem a documentação exigida para manterem essa ave aqui, conforme a regulamentação do IBAMA, vamos, sim, apreendê-la e levá-la para um abrigo provisório e, saiba, que estão sujeitos ainda a uma multa e também, caso haja alguma resistência, até a detenção…

Foi a gota d’água. Jesus desespera-se e corre em direção a Jacinto que saia do salão em companhia dos amigos…

— Me ajude, pelo amor de Deus, seu Jacinto, a polícia veio prender o papagaio. Algum desgraçado fez uma denúncia contra nós… se eu descobrir quem foi… acerto esse miserável…

Jesus contorcia-se todo, tentando explicar o que os policiais disseram…

— Não posso deixar eles levarem o lourinho, seu Jacinto, outra vez não… faça alguma coisa…

Jacinto olhava para os amigos…

— Está vendo, Carlão…o homem está quase tendo um ataque. Vamos lá resolver tudo isso já…

Todos partem em direção aos dois policiais, postados ao lado da viatura.

— Boa noite, senhores, sou o responsável pelo estabelecimento, do que se trata?

— Boa noite, senhor, sou o tenente Fonseca da Polícia Florestal. Este senhor aqui (aponta para Jesus), já está notificado de nossa ação. Vamos apreender esse papagaio que está sendo mantido em cativeiro e, inclusive já foi notificado também que se houver resistência, levaremos ele junto até a delegacia onde será autuado.

Jesus tremia ao lado de Jacinto e dos amigos.

— E o que impediria essa ação, tenente?

— Só uma coisa, senhor. A documentação completa do animal, bem como as autorizações e licenças competentes emitidas pelo IBAMA.

— Jacinto abre a pasta verde e retira a licença de criador amadorista de Jesus e a entrega ao oficial.

— Seria algo assim, tenente?…

Jesus arregala os olhos ao ver Jacinto passar ao oficial vários documentos que ele não tinha a menor ideia de sua existência.

O oficial, um velho conhecido de Beto, finge analisar detidamente os documentos da pasta e dá, finalmente o veredito…

— Muito bem, senhor Jesus,  deve ter tido o auxílio de amigos muito bem capacitados e entendidos nessa área. A documentação está impecável, não existe nada irregular aqui… e aponta para a pasta.

— O que posso dizer é que o senhor está plenamente habilitado para criar essa ave e espero que o faça da melhor maneira possível. Parabéns, senhor Jesus.

O tenente afasta-se um pouco e faz uma continência.

— Desculpem o transtorno, senhores, muito obrigado pela atenção.

O tenente faz um gesto significativo em direção a Beto, que retribui, e entra na viatura com o sargento.

Pela segunda vez nesse dia, Jesus chorava copiosamente por causa do papagaio. Sentira emoções bastante fortes, que jamais esqueceria em sua vida…

Soube depois que tudo não passou de uma armação dos amigos para marcar indelevelmente o dia da chegada do papagaio em seu novo lar. 

E marcou mesmo.

 

FIM

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