Apenas um minuto antes, as rajadas de vento forte sacudiam a grande árvore do estacionamento e a chuva volumosa lavava as vidraças da fachada.
Como por encanto, o vento para… a chuva cessa… e as nuvens escuras voam céleres em direção às serras, abrindo no céu, espaços muito mais azuis, com a atmosfera agora livre da poluição. Uma típica tempestade de verão, que lavou a cidade, mas trouxe atrás de si, uma onda de calor ainda mais intensa.
— Que chuvarada, hein, pai?
— Foi mesmo, Fernando, quebrou até alguns galhos da nossa árvore aí na frente. Peça depois para alguém fazer uma limpeza no pátio, antes da noite chegar.
— O Jesus já está encarregado disso, nem é preciso mandar.
— Sente um pouco, filho, quero lhe falar sobre uma ideia de que ando pensando.
Há muito que Jacinto desejava montar no Boteco, uma galeria de fotos, desde que recuperara aquele acervo enorme no antigo casarão do seu irmão Jorge.
— É… pode ser uma atração legal aqui no Boteco, pai. E onde pensa montar isso?
— Nós temos esse corredor comprido que conduz aos sanitários. Podemos preparar as paredes e providenciar uma iluminação especial.
— Bem pensado, pai, é um bom espaço que temos ali e poderá ser muito bem aproveitado. Mas temos que contratar gente para fazer isso, pai, terá que ser muito bem-feito.
— Claro, Fernando, mas primeiro terei que mandar restaurar as fotos que estão naquelas caixas, lembra?… É um trabalho especializado e depois, mandar enquadrar todas, antes de fixá-las nas paredes. Tem centenas de fotos de várias épocas, da família, de lugares da cidade, algumas bem antigas, da época do meu avô… Pensei até em um nome para essa galeria… Túnel do tempo.
— Ah, pai, criativo como sempre. Mas gostei da ideia, apoiado!
Jacinto acomodara as três caixas de fotos num compartimento do subsolo, ao lado da adega de vinhos. Um ambiente climatizado que evitaria a sua deterioração. Agora, sentia um ímpeto de descer lá e checar o estado delas.
—Vou lá ver, Fernando, faz anos que não mexo naquelas caixas.
Uma delas já estava aberta. Lembrou de a ter aberto ainda no casarão, quando havia identificado algumas fotos da família. Resolveu abrir a segunda caixa e começou a olhar as imagens, separando aquelas que julgava serem de difícil recuperação.
Foi quando uma imagem que manuseia a seguir o surpreende. É uma foto característica com vários membros da família reunidos, numa pose clássica. Lá estavam o seu avô Genaro, o seu pai José e a sua mãe Luísa, o seu irmão Jorge, adolescente, e ele, com aproximadamente quatro anos. Ao lado, uma senhora abraçava uma moça que aparentava ter pouco mais idade que Jorge e esta segurava pela mão, uma menina de cinco ou seis anos.
— É ela!!!… Mas não pode ser… É impossível… esta foto deve ter mais de sessenta anos…
Limpa cuidadosamente aquela foto e a leva para cima consigo. Ajeita cuidadosamente a foto sobre o balcão.
— Fernando!… Venha ver uma coisa… Ele se aproxima e examina a foto apontada pelo pai.
— Vê algo familiar nessa foto?
— Nada demais, pai, reconheço nela o vovô, a vovó, o tio Jorge e você, que deve ser esse pequeno. Não reconheço as outras pessoas que aparecem nessa foto.
— Não vê nenhuma outra pessoa conhecida?… Fernando examina mais detidamente a foto.
— Definitivamente, não reconheço mais ninguém, pai.
— A Genô já voltou da faculdade?
— Sim, mas parecia estar cansada e meio chateada, então, pedi para ela subir e descansar e só descer à noite para nos ajudar. Ainda nem abrimos ainda.
Jacinto ansiava por decifrar logo o mistério daquela foto, mas não desejava incomodar a filha naquele momento.
Genoveva, como de hábito, não esperava a noite chegar para iniciar o seu trabalho. Gostava de inteirar-se de tudo, conversava com as cozinheiras, reunia os garçons e garçonetes, checava a iluminação, o som ambiente. Era a sua rotina, antes mesmo dos primeiros clientes entrarem, o que, geralmente, só acontecia ao anoitecer.
— Onde o pai está, Fernando?
— Desceu para a adega. Está preparando suas caixas de fotos. Ele pensa em montar uma galeria com elas aqui no salão. Mas vai subir logo e irá atrás de você, Genô. Ele cismou com uma foto antiga da nossa família e algo nela o está intrigando.
Não demorou alguns segundos e Jacinto surge com algumas fotos e as coloca estendidas no balcão, já acenando para Genoveva aproximar-se.
— Veja estas fotos, Genô… Reconhece as pessoas?… Não apontou ninguém, queria ver se ela identificaria aquela pessoa especial, espontaneamente.
Genoveva examina atentamente as fotos e cita as mesmas pessoas antes reconhecidas pelo irmão. Jacinto não se contém e aponta para a imagem daquela moça segurando a criança pela mão.
— Não sei, pai, tem algo familiar nela, mas não consigo associar com alguma pessoa conhecida…
— É ela, Genô… É ela… Aquela mulher que vem aqui com uma amiga e um homem, lembra… que eu lhe falei que fica olhando para mim e você a chamou de “Ernesto”…
— Ô pai, eu estava brincando… Mas agora vejo a semelhança mesmo. São bem parecidas, mas não pode ser ela, não é, pai?… Quantos anos tem essa foto?
— Uns sessenta anos…
— Impossível então. Quem sabe não é só coincidência, uma sósia. Acontece muito isso, pai.
— Acho que não, minha filha, a semelhança é muito grande… Penso que no mínimo existe algum parentesco aí… Precisamos falar com ela…
— Eles vêm aqui em dias incertos, pai, eu lembro bem deles. São muito distintos, e, certa vez, passando por perto, ouvi o senhor que as acompanha, chamar uma de doutora… Não recordo o nome agora…
— Tudo bem, Genô, preciso esclarecer isso. Vou ter que esperar esse dia, então. Vou torcer para aparecerem logo por aqui.
Jacinto guarda as três fotos com carinho em uma gaveta do balcão, tentando também administrar a ansiedade e a curiosidade que o domina. Quanto terá de esperar?… Só a rotina do Boteco o fará esquecer aquela dúvida…
FIM