Sentado à cabeceira da mesa, Jacinto explicava animado aos amigos, as ações que havia tomado naquela semana, para conseguir trazer para o Boteco, um dos maiores símbolos da comida baiana.
— Mas, Jacinto, por que o acarajé?…. por que não o vatapá, a moqueca ou o bobó de camarão?… essas coisas têm em todo canto lá na Bahia… diz Alemão, já empunhando sua caneca de chope.
— Eu prefiro mesmo o acarajé, já comi muitos quando estive por lá… Carlão se manifesta, seguido por Beto e Henrique que concordam.
Jacinto começa a explicar seus motivos.
— Tudo começou quando eu li uma reportagem no jornal sobre aquela lanchonete em Salvador, que está bombando, depois que se especializou nesse petisco. O baiano adora isso, e essa lanchonete, em certos dias, fica com filas enormes em sua porta.
— Ah, eu vi por alto, sim, no jornal de domingo, não foi?… tinha uma foto com toda a equipe na fachada da lanchonete com a chef de cozinha que dizia ter desenvolvido a receita perfeita… ou alguma coisa assim…
— Isso mesmo, Japa, foi aí mesmo que li a reportagem… então, comecei a pensar em como poderia trazer isso para o nosso Boteco. Afinal, esta cidade tem uma grande população de baianos e seus descendentes, e essa seria uma forma de homenagear aquela culinária fabulosa.
— E você tem alguma receita disso, Jacinto?
— Receita de acarajé tem em todo lugar, Henrique. Basta acessar a internet e pronto, a gente acha várias maneiras de fazer o petisco… mas não era isso que eu queria, não queria nada comum. Troquei ideias com nossa chef de cozinha, a dona Amália e ela então, acabou me dando a sugestão mágica…
— Seu Jacinto, por que não entra em contato com a chef dessa lanchonete e pergunta se ela poderia vir nos dar umas aulas sobre essa sua receita?… caramba, pessoal, por que eu não havia pensado naquilo?…
Jacinto faz uma pequena pausa para engolir o seu chope, observando os olhares interrogativos em volta da mesa, esperando sua conclusão… quando todos, quase em uníssono…
— E daí, Jacinto, você falou com ela?
— Ah, meus amigos, a mulher não queria de jeito nenhum sair de lá, alegando mil motivos… o movimento intenso, etc, etc… ficamos quase uma hora conversando e aí, resolvi fazer-lhe uma oferta irresistível… pagaria um bom hotel para ela aqui perto, todas as despesas de viagem e ainda um valor que ela mesma estipularia para transmitir sua técnica para a nossa chef Amália…
Todos estavam impacientes pelo desfecho da história.
— Anda logo, Jacinto, a mulher concordou?
— Custou-me o olho da cara, senhores, e ainda me fez prometer que teria de assinar algum documento que me obrigaria a manter sigilo de sua receita… claro que concordei…
— E quando ela vem, Jacinto?
Àquela hora, o Boteco já estava bastante movimentado e Genoveva fazia suas andanças entre as mesas dos fregueses e, nesse momento, aproximava-se da mesa dos amigos, a tempo de ouvir o pai dizer, eufórico…
— A Georgina já está aqui, pessoal, desde segunda-feira. E confesso que me impressionou. É uma baiana arretada mesmo, ativa, muito prática e quis resolver tudo logo… vai ficar uma semana com a dona Amélia aqui e deve retornar na segunda ou terça que vem.
Em pé às costas do pai, Genoveva coloca as mãos sobre os seus ombros e diz para os amigos…
— E você esqueceu, não é pai, de dizer que ela é uma baiana linda e exuberante, além de excelente chef…
— Tem razão, Genô, ela é mesmo de chamar a atenção por onde passa.
— E isso tem tudo a haver com o que vou contar agora para vocês.
Genoveva contorna a mesa e vai sentar-se num dos lugares vagos.
— Ela chegou na segunda à noitinha e, depois do hotel, fez questão de vir apresentar-se naquela noite mesmo. Ela é mesmo muito ativa…
— Assim que entrou naquela porta, com sua indumentária característica e aquela fita nos cabelos, foi uma sensação entre a rapaziada de plantão no Boteco. Todos os olhos fixos nela. Até aí, tudo absolutamente normal…
— Mas, estão vendo lá naquela mesa da frente, bem próxima do balcão principal?… aqueles quatro rapazes superanimados?… ela faz um sinal apontando para a mesa.
— Pois é, eles são funcionários do Consulado argentino, e aparecem pelo menos uma vez por semana por aqui. Até já ouvi trechos de suas conversas e é sempre o mesmo tema… mulheres… apostas… galanteios…
— Tem um deles, de nome Juan Pablo, metido a conquistador, considera-se mesmo um verdadeiro “Don Juan”.
— Esse aí, logo que viu a Georgina entrar, não se conteve, foi até ela, fez uma mesura ridícula e a encheu com elogios baratos. A moça desconcertou-se, ficou sem ação por um momento e ele, achando estar abafando, continuou sua arenga melosa. Por sorte, eu vi aquela cena e corri até ela, que agarrou o meu braço dizendo…
— Sou a Georgina, preciso falar com o seu Jacinto.
— Desde então, esses quatro rapazes estão vindo todas as noites, e, sempre que a Georgina sai um instante da cozinha para espairecer, o “Don Juan” se apresenta, cheio de gracinhas e trejeitos. Ela está levando na esportiva por enquanto, me disse que nem presta atenção no que ele diz, naquele castelhano enrolado, mas afirmou que se fosse demorar mais tempo por aqui, iria dar um jeito nesse chato…
— E o chatão até já me perguntou se era possível enviar um recadinho para ela na cozinha…nem respondi.
Nessa altura, todos à mesa já tinham tomado as dores da Georgina.
— Mas que bocó, Jacinto…o cara não tem noção.
— Tem razão, Beto, o cara merecia uma lição… responde Ítalo.
Ouvindo isso, Jacinto sente brotar uma ideia na cabeça…
— Puxa, pessoal, estou pensando uma coisa que resolveria de vez essa situação da Georgina, mas acho que seria espetacular demais…
Isso bastou para acender o estopim da discussão que se segue… e, depois de alegações acaloradas, enfim, um consenso…
— Pai, a sua ideia é sensacional, mas dependeremos de um desempenho especial do Carlão, não sei não… Diz, com ar de dúvida.
— Vocês duvidam da minha atuação?… pois agora eu aceito o desafio, vou mostrar do que sou capaz, mas antes, tenho que combinar um plano com a tal Georgina, pode ser?
—Claro, eu posso levar você lá, Carlão… vamos?
Genoveva o acompanha em direção à cozinha e a euforia recomeça na mesa. Depois de alguns minutos, eles retornam, agora acompanhados por Georgina, que outra vez, ao passar próxima à mesa dos argentinos, ouve as cantadas castelhanas, acompanhadas de olhares lânguidos.
— Muito prazer, senhores, espero que esse plano do seu Carlão aqui dê certo, mas se não der, não faz mal… vou embora na segunda mesmo, são só mais dois dias para escutar essas besteiras… diz, com uma simpatia cativante.
O plano seria colocado em prática no dia seguinte, sábado. Era um dia em que os amigos não frequentavam o Boteco, porém, aquele seria um dia imperdível para eles, ansiosos que estavam pelo desempenho do Carlão.
A noite prometia, o Boteco atingia sua lotação máxima. Os amigos estavam a postos, menos o Carlão, que desde a noite anterior sumiu sem deixar vestígios. Nem telefone atendia… Jacinto se impacientava…
— Será que ele desistiu, meus amigos?… acho que era muita coisa para ele, coitado… talvez tenha vergonha de vir dizer que não vai fazer…
— Que nada, Jacinto, conhecendo ele como nós conhecemos, sabemos que não nos deixaria na mão, sem pelo menos um aviso… calma, vamos esperar…
Todos concordam com as palavras do Alemão, que aproveita para levantar sua caneca de chope e fazer um brinde em homenagem ao Carlão.
O tempo vai passando e a euforia vai tomando conta do Boteco.
Repentinamente, a porta frontal escancara-se com força e os olhares convergem para a figura surreal para aquele ambiente… estática… bem no meio da entrada.
Silêncio momentâneo, todas as cabeças, sincronizadas, mirando aquela imagem.
Um frio percorre a espinha dos amigos na mesa.
— Jesus Cristo!!!… o que é isso… só pode ser o Carlão, mas se for ele, está irreconhecível… acho que exagerou…
Jacinto, acompanhado por Alemão e o Japa vão até aquela figura, ainda em dúvida se era mesmo o Carlão…
— Carlão… é você, homem?
— Mas o que que é isso?… claro que sou eu, não foi o que combinamos?
— Minha nossa, Carlão, você está parecendo aquele jagunço do Auto da Compadecida, essa roupa nem é usada pelos baianos, isso é coisa de cangaceiro da caatinga…
— Ora, e quem é que disse que a Georgina era casada com um baiano?… Ela pode ter se casado com um alagoano, paraibano, sergipano, mineiro, paulistano ué… qualquer um.
— Tudo bem, tudo bem, vamos começar logo a encenação, pois estamos atrasados… Pondera Jacinto.
Tudo havia sido combinado e ensaiado no dia anterior. Carlão, então, começa a empurrar Jacinto pelo corredor, com ar ameaçador e quando chegam à altura da mesa dos argentinos, começa o desempenho de Carlão…
— Onde tá a minha mulhé, seu Justino!!!
— É Jacinto, seu Napoleão, é Jacinto…
— Não me interessa… agora eu quero é falá com minha mulhé Gina… Diz e, ao mesmo tempo, saca da cintura um punhal longuíssimo que rebrilhava na luz do Boteco (era de borracha, mas convincente).
E fazendo voluteio no ar, simulando golpes imaginários de peixeira, vai dizendo…
— Minha mulhé me ligô dizendo que tem um cabra por aqui falando gracinha no ouvido dela… quero sabê quem é esse cabra, porque se fô macho mesmo, vai tê que repetir no meu ouvido…
O terror estampou-se na face dos argentinos, principalmente o Juan Pablo, que, branco, permanecia paralisado, só os olhos arregalados acompanhando as voltas do punhal no ar.
Como ensaiado, Georgina sai correndo pela porta “vai-e-vem” da cozinha…
— Napoleão, meu amor, nem avisou que vinha me encontrar… porque está tão nervoso, querido?
O desempenho de Carlão era impecável.
— Não adianta fingí que tá tudo bem não, eu tô aqui pra acabá c’as gracinha do cabra qui importunô ocê… cadê ele?… Diz, brandindo o punhal no ar.
Nem é preciso dizer em que situação se encontravam os argentinos naquele momento. Juan Pablo mal continha-se em pé, tremia dos pés à cabeça, só não saiu correndo, porque isso o condenaria…
Jacinto fingia segurar fortemente o jagunço, olhando de viés para os rapazes e esforçando-se para conter-se, a vontade de gargalhar era tão grande que parecia doer, segundo ele contou mais tarde.
— Mas então, meu amô, me aponte logo esse infiliz, pra mim resolvê logo esse caso…
— Que é isso, querido, vamos lá para dentro que eu fiz um acarajé do jeitinho que você gosta… vamos…
Nesse ponto, o combinado era todos os amigos se achegarem para perto do Carlão, que daria o toque final à sua representação… depois da dica de Georgina…
— Não precisa fazer nada não, meu amor, tenho certeza que esses meninos aí não fizeram por mal, era só brincadeira… Diz, e aponta para Juan Pablo…
— Vô pegá esse cabra da peste dos diabos, vô insiná ele falá essas coisinha pra mãe dele… e faz menção de avançar.
Juan Pablo já havia se abrigado embaixo da mesa e os outros três se misturaram com os fregueses da outra mesa.
E, como previamente ensaiado, todos os amigos arrastam aquele jagunço esperneando para fora do Boteco. Lá, embaixo da grande árvore do estacionamento, dão vazão às gargalhadas a tanto represadas.
Alguns segundos depois, a porta abre-se e um rapaz sai em desabalada carreira até um automóvel no fim do estacionamento. Em seguida, ouve-se uma arrancada furiosa, seguida por um cheiro de borracha queimada.
— Chega Carlão, acho que perdi um freguês…
— Tá bom, Jacinto, agora quero ir lá na cozinha cumprimentar a Georgina, ela ajudou muito…
E todos entram, comemorando o grande feito do dia. Aquilo ficaria para a história do Boteco.
Como num balé sincronizado, todas as cabeças iam acompanhando os passos do jagunço Carlão até a cozinha, principalmente a dos três argentinos, prontos para correr a qualquer momento.
— Obrigado, Georgina, você trabalhou muito bem, daria uma excelente atriz, hein?
— Que nada, Carlão, meu negócio é cozinha mesmo, mas com um “maridão” assim, até que eu me arriscava a casar…
—Ahahah, não vai dar não… já sou casado, dona Georgina…
Sai da cozinha ainda querendo desempenhar mais um pouquinho o papel e, passando pelos três argentinos, põe a mão significativamente sobre o punhal na cintura. Foi o que bastou.
Dali a segundos, os três abandonam apressados o Boteco, talvez até pensando em pedir asilo na embaixada castelhana…
FIM