Jacinto era um empreendedor nato. Desde cedo, o trabalho no armazém de secos e molhados do pai, incutiu-lhe o gosto pelos negócios. Assumiu o armazém, com a morte do pai e não demorou muito para transformá-lo em mercado e finalmente num supermercado bastante movimentado em um bairro nobre, próximo ao centro da cidade. Fez fortuna, estava educando bem os seus dois filhos, mas trazia na mente outro sonho. Possuir um bar chique, moderno, mas não um bar comum, teria que ser igual àqueles que assistia nos filmes americanos…um “American Bar”, com uma freguesia de alto nível.
“Um dia ainda vou ter um Boteco em uma região chique de alguma grande cidade”… sonhava alto.
A essa altura, quando já era um próspero comerciante, recebeu a notícia da morte do seu tio Jorge, solteirão convicto e boêmio, aos 68 anos, de quem raramente ouvia falar, pois desde que era moleque, soube estar brigado com seu pai.
Quando ele o citava, era sempre para dizer… “— Aquele folgazão, bon-vivant, não quer saber de nada, só de dar festinhas cheias de vagabundas naquela casa velha…” Crescera com essa imagem do tio.
O inventário findou-se depois de alguns meses, e Jacinto foi intimado a comparecer num escritório de advocacia famoso em um prédio suntuoso no centro da cidade, bem na orla da praia.
Sabia que seu tio não tinha ascendentes, nem descendentes, só restaram mesmo, ele e o seu pai. Mas, com a imagem que tinha dele, passada pelo pai, temia que aquelas festinhas e a vida devassa do tio, o que poderia ter herdado mesmo poderia ser as dívidas e uma fila de credores.
— Bom dia, senhor Jacinto, sou o doutor Gofredo… sabe por que está aqui?
— Bom dia, doutor, suponho que seja algo relacionado às divi… quer dizer, ao inventário do meu tio Jorge…
Depois dos preâmbulos e arengas do advogado, ele chega ao que realmente interessava ao Jacinto… o que seria?… teria sobrado algo?… ou aquilo que temia… de quanto seria?…. poderia pagar?
— Senhor Jacinto, o senhor o conhecia bem?
— Confesso que não, doutor. Eu o vi apenas duas vezes que me lembre. Uma, era moleque ainda, outra, já rapaz. E sempre que se encontravam, ele e meu pai, acabavam discutindo no final… coisas antigas, picuinhas de infância… meu pai era muito rígido e não concordava muito com as extravagâncias dele…
— Realmente, gostava da boa vida, mas extravagante, pelo visto, não era. Amealhou certa fortuna, com seu cargo público federal e, após aposentar-se, fez algumas aplicações que lhe sustentavam os caprichos e as coisas que amava.
— Não conhecia essa faceta do meu tio.
— Infelizmente, não tenho ótimas notícias para lhe dar, senhor Jacinto. Ele foi muito explícito ao determinar a destinação de seus bens e eu adoraria estar lhe dando agora, a notícia de ser o destinatário de sua fortuna. Mas, é muito claro o que deixou escrito aqui. Todo o seu dinheiro será repartido entre três amigas íntimas, que alega, cuidaram dele até os últimos momentos. O resto diz, deixava para o irmão, ou seus herdeiros.
— Acho muito justo, doutor Gofredo, se foi como ele diz. Mas, do que se trata esse “resto”?… dívidas?
— Acredito que terá algumas, sim, se quiser ficar com o seu casarão aqui no bairro. Segundo ele, há algum tempo deixou de pagar impostos e taxas, com as quais não concordava. Dependendo do tempo que fez isso, o valor pode ser desproporcional ao valor do imóvel…
— E onde fica esse imóvel, doutor?
— Numa rua transversal, aqui mesmo no centro, a meio caminho entre o parque e a orla da praia.
— Tudo bem, então, doutor Gofredo, se é o que o meu tio desejou, pode finalizar o processo, diga o que precisa e trarei para o senhor. E pode providenciar a transferência do tal imóvel para o meu nome.
Ao fim de dois meses, voltou ao escritório do doutor Gofredo para assinar a transferência, que tinha sido feita por um valor irrisório, que por sorte lhe economizaria dinheiro, que seria depois necessário para quitar os impostos e taxas atrasados, segundo o advogado.
— Senhor Jacinto, posso simplificar tudo para o senhor, se quiser se desfazer desse imóvel e de suas dívidas… pago ao senhor o valor que está aí no documento e o senhor sairá daqui no lucro… o que acha?
— Não penso nisso no momento, doutor. Era a casa do meu tio, vou me inteirar de tudo e, se mudar de ideia, voltamos a conversar… diz, estendendo a mão para despedir-se. Sai apressado, pois acabara de anoitecer.
Enquanto ouvia as palavras melosas do doutor, apreciava pela janela o mar azul, as luzes da orla pisca-piscando e pensava naquilo que o estava preocupando agora… o trânsito infernal da cidade, naquela hora e ainda uma sexta-feira!
Sai do elevador apressado e vai em direção ao estacionamento, pensando já no melhor trajeto que poderia fazer…
… “Minha nossa!!! a Avenida principal deve estar toda congestionada… o Túnel então… vou chegar tarde em casa.”. Precisava cruzar a cidade toda para chegar ao seu destino.
… “Por sorte, a Carmem e o Fernando já estão bem inteirados e integrados à rotina do supermercado, acho que hoje, terão que fazer o fechamento sozinhos”…
O sábado amanheceu radioso. Um típico dia de verão, quente desde cedo.
— Vamos lá Carmem, vamos ver a tal herança do tio Jorge. É longe, melhor ir agora de manhã.
— Também quero ir, pai, estou curioso… O vovô sempre falava mal dessa casa, não é?
— E a Genô?
— A Genoveva foi até a casa de uma amiga da faculdade, lá na Frei Caneca, aqui perto, pai… Eu a aviso que vamos lá…
A euforia era grande na cidade. A descontração, as roupas de praia, o calor, tudo indicava ser um sábado mesmo, mas o trânsito estava bom, fluindo.
— Ok, chegamos na avenida principal… Fernando, vá olhando as placas aí, é uma dessas travessas. Estão vendo aquele prédio alto lá na frente? é lá onde fica o escritório daquele advogado, doutor Gofredo.
— É essa aí, pai, entre à direita…
Logo depois, os três parados na calçada, do outro lado da rua, contemplam aquele casarão arruinado pelo tempo, com o mato crescendo no jardim, aquela árvore enorme ao lado da entrada… suas faces estampavam um misto de decepção, curiosidade, dúvida.
— Nossa, pai, o terreno é grande, a casa também é, mas uma reforma aqui, custaria muito, eu sei. Já reparou nos imóveis ao redor?… é um bairro de classe alta, pai, e esse casarão está totalmente fora do padrão…
Jacinto fazia cálculos e mais cálculos tentando estimar o valor dos impostos e taxas atrasados e qual seria o valor de mercado desse imóvel, caso vendesse. Sabia que Fernando, quase se formando em Administração, entendia do que estava falando.
Carmem só tinha um pensamento, totalmente alheio aos dois…
… “Aquele velho safado… será que deixou alguma coisa boa aí dentro… qualquer coisa de valor… móveis, prataria, utensílios… se ficou algo já deve ter sido levado por aquelas vaga… “donas” que lhe puxavam o saco… o Jacinto deveria ter sido mais esperto”…
Entraram. E Carmem comprova o que havia pensado. Tudo o que poderia ser carregado, deve ter sido levado. Só restaram os móveis de maior tamanho e peso, alguns até bem conservados.
Porém algo, que Jacinto jamais imaginaria encontrar, intactos como se encontravam, chamou sua atenção e o emocionou. Numa dependência onde parecia ter sido a biblioteca, com suas estantes todas deterioradas, encontrou três grandes caixas de papelão lacradas a um canto. Ao abri-las, a surpresa. Eram quadros de fotos, muitas fotos, de vários tamanhos, da sua família, de seus pais, várias em que ele aparecia ao lado do irmão, ainda pequenos. Havia também, flagrantes diversos, do bairro, da praia, de praças. Sempre soube que seu pai era um apaixonado por fotografia. Era um acervo enorme, inclusive com imagens antigas do bairro e da cidade, que poderiam ter até um valor histórico.
“Quem sabe não monto uma galeria no meu futuro bar”… sonhava.
Jacinto andava de um cômodo a outro, contava os passos medindo, olhava pela janela e olhava o jardim da frente, depois ia na outra janela e calculava o vão anotando tudo num caderninho.
— Viu lá atrás, Fernando, ainda tem as garagens… são duas, bem grandes e um vão dos dois lados da casa. Isto deve ter sido uma bela casa antes.
— Pode ter sido, pai, mas foi há muito tempo, agora está em ruínas… só vai dar despesas.
Fernando começou a notar uma mudança repentina no comportamento do pai. Estava eufórico, por certo com alguma ideia na cabeça, que não conseguia esconder. De repente, entende tudo…
… “Nossa!…será que ele está pensando naquilo?… naquele tal bar?…
— Pai, se está pensando no seu sonho, acho que não é ho… mas Jacinto o interrompe…
— Veja, filho, isto aqui caiu do céu para nós, é o espaço perfeito para concretizar o meu sonho…
— O custo seria altíssimo, pai, reformar tudo…
— Que reforma, filho… não penso nisso. Muito mais barato é demolir tudo e construir algo novo, conforme o que já tenho em mente… o terreno é até maior do que precisamos, o espaço da frente pode ser aproveitado para um bom estacionamento para os clientes… e essa árvore grande nem vai precisar cair, vai ser o charme da casa…
— Mesmo assim, pai, ainda terá que fazer um bom investimento aqui.
Fernando já estava sendo convencido pela euforia do pai e começa a conjecturar também.
— Seria preciso levantar o total das dívidas da casa, custo da demolição, antes de mais nada… já fazia cálculos também.
— E você viu, né, pai, o padrão deste lugar. Terá que ser algo no mesmo nível.
—Vamos arregaçar as mangas, filho, se preciso for, posso até me desfazer do supermercado para concretizar este sonho… e ainda tenho os meus seis amigos… sei que podem… quem sabe… poderão participar também…
Carmem, até então entretida em vasculhar os utensílios da copa e cozinha em busca de algo aproveitável, sobe as escadas, a tempo de ouvir a última frase do marido.
— Não acredito que ouvi o que ouvi. Está louco, Jacinto?… não vou concordar com nada disso… amarrou a cara e não falou mais nada até em casa.
Foram vários dias de tempo ruim, conversas acirradas, mas por fim, um consenso. Jacinto lutou pelo seu sonho e venceu.
E assim nasceu o “Boteco do Jacinto”.
FIM