São 14 histórias, incluindo 2 inéditas.
O Alemão tinha esse apelido desde pequeno, não à toa. Moleque de pele alva, olhos azuis, cabelo ruivo… era um lídimo representante dos “germanos”. A alcunha caiu-lhe como uma luva e nunca mais se livrou dele.
Houve um tempo no passado, em que era muito raro um moleque conservar o seu nome real. Muitas vezes, quando se citava o seu nome verdadeiro, ninguém sabia quem era, mas, bastava dizer o apelido e, como mágica, todos lembravam imediatamente.
E os apelidos aplicados pela molecada eram como cola, adesivos que incorporavam e se tornavam inesquecíveis, porque retratavam alguma particularidade mais saliente do apelidado.
Um deles, com dois dentes maiores na frente, virou o “castor” e outro, com falha em dois deles, o “dentinho”. O mais alto da turma era o “montanha” e o mais forte, o “morsa”. E tinha um, bem habilidoso com as mãos, o “mãozinha”, agora é só imaginar qual era a particularidade do “cabelo”, do “manco”, “cabeça”, “sovaco”, “grilo”, e assim vai…
A grande árvore do pátio começava a perder suas folhas. O outono havia chegado com seu ar mais seco e as temperaturas mais amenas. O céu negro de Lua nova, apinhado de estrelas e uma brisa leve e fresca, tornavam aquela noite bastante convidativa para um encontro com os amigos, uma ida aos bares, lanchonetes e restaurantes.
E o boteco do Jacinto estava movimentado naquela noite. O ambiente animado e aconchegante propiciava aos seus frequentadores, momentos de descontração e intimidade.
Aromas variados enchiam o ambiente, com a fragrância das flores, nos vasos estrategicamente dispostos por Genoveva, que pareciam disputar espaço com o cheiro característico das suas iguarias tão apreciadas.
Jacinto mantinha-se atrás do balcão, presenciando a lida dos garçons e garçonetes, coordenados pela sua filha Genoveva, sempre circulando pelo salão. Postava-se num dos cantos do comprido balcão, onde costumava atender algum cliente especial que o procurava em busca de uma boa conversa.
Desde as primeiras horas da manhã, um chuvisco fino e intermitente molhava as ruas e calçadas próximas daquele recanto aprazível, que ainda teimava em manter certas tradições, conservadas desde gerações anteriores.
Embora sua quinta geração de proprietários procurassem manter sempre o aspecto pitoresco e original do lugar, foi inevitável renderem-se às modernidades e às alternativas da inteligência artificial e da robótica proporcionadas pelo mundo moderno.
Toda a sua edificação possuía um campo de força, à semelhança dos que protegem as naves espaciais, que a protegia das intempéries, do sol inclemente e até de possíveis colisões de qualquer tipo. Uma das extensões era o pátio, destinado aos veículos de toda natureza, inclusive os voadores.
Num cantinho esquecido do grande pátio, numa placa de bronze, azinabrada pelo tempo, ainda se consegue distinguir uma data e algumas palavras… 06/02/2110…. Comemoração dos cem anos do “Boteco do Jacinto”.
Aquela foi uma semana muito esperada pela turma toda, especialmente por Jacinto, ainda inconformado com a trágica morte do seu cliente. Esperavam ansiosamente as notícias que seriam trazidas pelo Beto que acompanhava as investigações de perto.
A primeira pergunta de todos ao chegarem era sempre:- “alguma notícia sobre as investigações?”
— Nada ainda, não tenho notícias do Beto desde a semana passada. Por certo, hoje, ele deverá trazer algumas novidades, pois já nos disse que colaboraria com o pessoal da delegacia aqui do bairro, encarregada das investigações… respondia Jacinto.
As conversas, invariavelmente, versavam na mesa sobre aquele delito brutal e todos já tinham selecionado o seu suspeito favorito e defendiam o escolhido com entusiasmo.
Apenas Beto ainda não havia chegado.
Era um hábito já enraizado na rotina de Jacinto, nos dias em que não tinha compromissos logo cedo.
Descia nas primeiras horas da manhã, recolhia as correspondências e o jornal deixados na caixa de entrada do boteco, depois dirigia-se a uma determinada mesa na área leste do salão, que recebia a luz do Sol nascente.
Separava as correspondências e depois punha-se a ler o jornal, estendido à sua frente. Gostava de folhear as páginas, deter-se em algum fato interessante, embora soubesse que era um veículo de informação já ultrapassado pelos computadores, pelos telefones celulares, pelo rádio e pelas TV’s, que noticiavam tudo instantaneamente.
Inclusive, os próprios jornais disponibilizavam suas edições “online” para quem quisesse assinar.
O dia amanheceu chuvoso, mas o calor intenso do verão, em pleno mês de janeiro provocava uma evaporação intensa da umidade que ia acumulando no céu, massas de nuvens que vagavam lentamente na atmosfera.
A chuva cedeu, mas a noite começou enevoada, como o famoso “fog” londrino. Mas, nas camadas mais altas, as nuvens já não eram tantas e agora se moviam mais rápidas em direção à serra, intercalando entre elas, um céu de lua cheia.
É intrigante como certas coincidências ocorrem. Aquela noite, em tudo, sugeria o cenário de um filme de suspense e o calendário ajudou… era uma sexta-feira, dia treze.
Inevitável os comentários e brincadeiras sobre isso. E, na reunião dos amigos, Carlão foi o primeiro a tocar no assunto.
— Há um dito popular muito antigo, que corre entre a gente simples do interior, que diz: “sexta-feira treze com noite de lua cheia, é dia das almas penadas andarem por aí”…
Foi o estopim para desencadear toda sorte de lendas… loira do espelho, trem fantasma, dama do cemitério, lobisomem, mula sem cabeça… todos tinham alguma história para contar. Foi quando Beto, tomando a palavra…
Inês é uma das amigas íntimas de Genoveva. Conheceram-se nos primeiros dias de faculdade, quando descobriram que eram vizinhas no bairro em que moravam. Sempre que os horários coincidiam, combinavam de fazer o trajeto juntas, ora no carro de uma, ora no da outra. Inês cursava direito e Genoveva Psicologia.
Com o passar do tempo tornaram-se confidentes. Inês considerava Genoveva como sua terapeuta, para quem exteriorizava todos os pormenores de sua vida íntima. Apaixonada pela matéria que estudava, Genoveva procurava esmerar-se cada vez mais nos conselhos e orientações que dava à amiga. Era uma área da Psicologia que passou a interessá-la recentemente, depois de uma longa palestra que teve oportunidade de ter, ali mesmo no boteco, com um grande especialista em terapia de casais.
Há muito que Genoveva acompanhava a vida conjugal tumultuada da amiga. Pouco antes de ingressar na faculdade, Inês e seu namorado Marco Antônio, que se relacionavam a cerca de dois anos, resolveram unir seus destinos e morar juntos, muito a contragosto de seus familiares, que desejavam um casamento tradicional depois de sua formatura.
Se havia um sentimento dominando sua mente naquele instante, era de gratidão e reconhecimento pelo trabalho incansável daquele homem que ele olhava, através das vidraças do salão.
O chuvisco fino que molhou o dia inteiro até a tardinha, começou a engrossar com a chegada da noite e agora era uma chuva persistente, que não diminuía de volume já havia algum tempo.
Com um grande guarda-chuva, feito uma barraca, desdobrava-se no pátio, conduzindo os clientes, ora para os seus carros, ora deles para a entrada principal do boteco.
Era uma sexta-feira, dia costumeiro da reunião semanal com seus amigos, mas o mau tempo e o trânsito ruim eram imprevisíveis, talvez nem viessem… pensa Jacinto, e já ia se afastando das vidraças, quando ouve aquela buzina inconfundível do veículo do Carlão acessando a entrada do estacionamento.
A tarde calorenta cedeu lugar a uma noite de Lua cheia, com uma claridade que projetava uma sombra no pátio da grande árvore do estacionamento.
Jesus permaneceu um instante imóvel, passeando o olhar pela fileira de carros, todos alinhados conforme sua orientação. Sem ele, aquele pátio entraria em colapso num dia como esse, uma sexta-feira de tempo agradável e com a euforia normal que antecede um feriado prolongado. Esperava a chegada de muitos mais e supunha se teria que abrir aquele espaço extra que sempre mantinha reservado.
Conhecia a maioria dos carros dos clientes, mas não reconheceu aquele que acabava de acessar a entrada do estacionamento. Sinalizou logo para que se aproximasse e apontou a vaga que deveria ocupar. Logo distinguiu o logotipo com as quatro argolas da Audi. Era prateado e reluzia com a luz do luar.
Em seguida, executa uma cortesia que só fazia quando percebia serem mulheres conduzindo. Abre cortesmente a porta do passageiro. Uma senhora elegantemente trajada sai com desenvoltura do veículo e agradece com um gesto amável para Jesus. A motorista, uma bela jovem, contorna o carro e vem ao seu encontro e, de braços dados, encaminham-se para a entrada do boteco.
Estamos num futuro distante quase que plenamente dominado pela IA, que oferece à sociedade todas as facilidades possíveis e imagináveis, desde algoritmos controladores de todas as atividades domésticas até os que controlam sua vida social e financeira.
Nas últimas dezenas de anos, o ser humano vem sofrendo uma verdadeira mutação. Não tanto no sentido físico, mas no cultural, moral e ético.
As inúmeras inversões de valores que foram acontecendo, também foram causando mudanças sutis, todavia, consistentes, provocando alterações no comportamento das pessoas, nos meios e na produção cultural, nas relações de trabalho, nas interações sociais e também nas suas relações amorosas…
— E é isso, Fernando, desejo realizar aqui, no lugar onde tudo começou, essa surpresa para minha noiva, mas não quero uma festinha comum.
Norberto e Fernando foram colegas de faculdade e se tornaram amigos desde então. Fernando tinha por habito convidar aqueles mais próximos para visitarem o boteco. Norberto foi um deles e se tornou assíduo frequentador, mesmo agora, depois de formados.
Foi há pouco mais de dois anos, durante uma comemoração de aniversário que Norberto viu pela primeira vez Berenice por quem se encantou. Assim que a avistou, foi procurar Fernando.
— Puxa, Fernando, quem é aquela moça linda ali, naquela festa?
— É Berenice, uma grande amiga de minha irmã da faculdade. Está comemorando seu aniversário com alguns amigos da escola.
— E ela vem sempre aqui?
Subiu as escadas seguindo a esposa, sentindo no ar a fragrância do perfume favorito dela. No último degrau, ela aciona as luzes da sala e vira-se para Jacinto.
—Espere por aqui…”seu Jacinto”…vou buscar as provas do crime.
O carrinho de bebidas a um canto atrai o seu olhar. Serve-se de uma dose do seu whisky favorito e aproxima-se da janela, contemplando a noite lá fora. O ar parado deixava as folhas e galhos da árvore do pátio completamente imóveis e lá, bem longe no horizonte, na direção das serras, fora das luzes da cidade, pode ver alguns raios esparsos, riscando o céu escuro.
Era o dia de compras para o Boteco. Jacinto sempre saia antes do Sol. Gostava da tranquilidade das ruas antes do trânsito, da amenidade do tempo, de vagar sem pressa pelos corredores do entreposto, atrás da melhor qualidade para os produtos de que precisava. Quase sempre retornava no final da manhã, mas naquele dia, tinha encontrado tudo mais rápido do que habitualmente.
Estaciona a caminhonete no espaço reservado à família e nota a ausência do carro de sua esposa.
—Bom dia, dona Amália, peça para o Jesus tirar as mercadorias da caminhonete, vou ter que sair em seguida.
—Deixe comigo, seu Jacinto.
Naquela madrugada uma tempestade castigou a cidade, com raios, trovões e rajadas de vento que vergavam as árvores mais altas. Mas a natureza sempre acha o seu ponto de equilíbrio e logo aos primeiros sinais do alvorecer, o Sol prometia um dia radioso. E, naquela manhã fresca e límpida, o que mais se presenciava eram as pessoas lavando e varrendo as folhas e galhos das suas calçadas, ruas e quintais.
Não foi diferente no Boteco do Jacinto. A grande árvore do pátio também sofrera suas perdas na tempestade. Uma quantidade de folhas e galhos cobria toda a extensão do estacionamento.
Repentinamente, alguém toca num assunto proibido pela turma, talvez, motivado pelo fato de que aquele ano, um ano qualquer em nosso país, transcorria mais um período eleitoral.
—Mas pessoal, nós já não combinamos aqui, que não entraríamos em nenhuma discussão sobre esses assuntos?
—Tem razão, geralmente sempre causam confusão e desentendimentos até entre familiares, quanto mais aqui entre nós. Cada um desenvolve suas convicções e não aceita opiniões contrárias….. alerta Jacinto.
Genoveva circulava pelo salão, quando notou Carmen sentada na mesa cativa dos amigos, com uma taça de vinho à frente. Algumas vezes fazia isso, descia, servia-se de um bom vinho e ia sentar-se ali, observando o movimento. Sempre que possível, Jacinto ia ter com ela e passavam muito tempo conversando. Genoveva, raramente interrompia esses momentos, pois gostava de vê-los ali, juntinhos.
Mas agora, via que seu pai estava entretido com um cliente no balcão e, então, resolve ir até a mesa.
— Sente-se um pouco aqui comigo, Genô… pare um minuto.
Ela contorna a mesa e vai sentar-se ao lado da mãe.
Um dos lugares favoritos de Jacinto era atrás do balcão. Com uma postura sempre tranquila e amena, atraia aqueles clientes solitários, carentes de um ouvido amigo para desabafarem suas confidências. Depois de ouvir centenas de desabafos, dramas familiares, atritos conjugais, intrigas de trabalho, ele considerava ser ali, o “confessionário” do Boteco.
Ao longo do tempo, sentia que os clientes não buscavam nenhum aconselhamento psicológico, opiniões, ou qualquer tipo de ajuda, só queriam mesmo era desabafar, tomar algumas doses de bebida e conversar com alguém. E funcionava… a maioria deles, no final, se diziam aliviados.
Apenas um minuto antes, as rajadas de vento forte sacudiam a grande árvore do estacionamento e a chuva volumosa lavava as vidraças da fachada.
Como por encanto, o vento para… a chuva cessa… e as nuvens escuras voam céleres em direção às serras, abrindo no céu, espaços muito mais azuis, com a atmosfera agora livre da poluição. Uma típica tempestade de verão, que lavou a cidade, mas trouxe atrás de si, uma onda de calor ainda mais intensa.
— Que chuvarada, hein, pai?
— Foi mesmo, Fernando, quebrou até alguns galhos da nossa árvore aí na frente. Peça depois para alguém fazer uma limpeza no pátio, antes da noite chegar.
— O Jesus já está encarregado disso, nem é preciso mandar.
Sentado à cabeceira da mesa, Jacinto explicava animado aos amigos, as ações que havia tomado naquela semana, para conseguir trazer para o Boteco, um dos maiores símbolos da comida baiana.
— Mas, Jacinto, por que o acarajé?…. por que não o vatapá, a moqueca ou o bobó de camarão?… essas coisas têm em todo canto lá na Bahia… diz Alemão, já empunhando sua caneca de chope.
— Eu prefiro mesmo o acarajé, já comi muitos quando estive por lá… Carlão se manifesta, seguido por Beto e Henrique que concordam.
Jacinto começa a explicar seus motivos.
Circulando por entre as mesas dos fregueses, Genoveva não podia deixar de ouvir trechos de conversas as mais controversas possíveis. Adorava esses momentos e tinha até desenvolvido um comportamento apropriado para tornar-se o mais invisível para eles. Ora passando um pano em uma mesa, ora gesticulando para uma das garçonetes, ora fingindo prestar atenção em algum outro ponto do Boteco… esmerava-se para não ser notada pelos clientes.
E eles acostumaram-se com sua presença fortuita e quase nunca interrompiam ou baixavam mais as vozes, quando sentiam a sua aproximação. Era o que ela queria.
Uma das coisas de que Jacinto não abria mão, era ir fazer as compras dos principais itens da culinária do Boteco. Queria manter a qualidade de sua comida no mais alto nível. Alguns de seus itens eram apreciados e comentados pela sua freguesia, como o seu bolinho de bacalhau, o camarão gigante grelhado, chamarizes do Boteco, principalmente depois que foi alvo daquela reportagem do jornal e da revista especializada em gastronomia.
Duas vezes por semana, saía cedinho, de madrugada ainda, para ir lá no Mercado Municipal, que conhecia bem desde os tempos do seu supermercado. Dizia sempre, que só ali encontrava os melhores azeites e o melhor bacalhau da Noruega.
Jacinto era um empreendedor nato. Desde cedo, o trabalho no armazém de secos e molhados do pai, incutiu-lhe o gosto pelos negócios. Assumiu o armazém, com a morte do pai e não demorou muito para transformá-lo em mercado e finalmente num supermercado bastante movimentado em um bairro nobre, próximo ao centro da cidade. Fez fortuna, estava educando bem os seus dois filhos, mas trazia na mente outro sonho. Possuir um bar chique, moderno, mas não um bar comum, teria que ser igual àqueles que assistia nos filmes americanos…um “American Bar”, com uma freguesia de alto nível.
A voz severa da mulher às suas costas fez rodopiar os pensamentos em sua cabeça. Um calafrio percorreu sua espinha, ficou paralisado. Pior, já tinha bebido alguns chopes e, com a bexiga cheia, estava a ponto de urinar nas calças ou ter um infarto fulminante. Não tinha coragem de virar-se e encarar a mulher.
Esta é a história de sete amigos inseparáveis. Conheceram-se na infância, conviveram na adolescência e sonharam na juventude. Amadureceram, casaram-se, tiveram filhos e embora com atividades diferentes, tinham interesses comuns e continuaram a se reunir constantemente.
Jacinto era dono de um boteco acolhedor, com um ambiente aconchegante numa rua tranquila de um bairro nobre da cidade. Tinha uma freguesia selecionada e exigente. Sua comida de boteco e seu chopp eram apreciadíssimos. Fã incondicional de filmes americanos, fazia de tudo para aquilo parecer um “American bar”.