— Estamos quase no meio do século vinte e três… e a data que vejo num desses documentos é de 2066, portanto, isto tem cento e oitenta e oito anos!!!, jamais poderia imaginar que pudessem existir coisas como essas…
Lívia havia encontrado um pequeno baú de madeira entalhada, muito bem lacrado, no compartimento de despejos de sua casa, soterrado por toda sorte de objetos acumulados e esquecidos ali por anos.
Estava repleto de manuscritos, restos do que pareciam ser fotos, totalmente corroídas e desbotadas. O estrago feito pelo tempo nesses papéis era bastante grande.
“Céus, como podemos deixar essas coisas acontecerem… isto deve ser restaurado, com todo cuidado, pois se trata da memória da família… por que razão isso tudo foi guardado nesse baú?”… pensa.
Vai depositando com todo cuidado aquelas páginas amarelecidas pelo tempo, quase esfarelando-se com o manuseio, sobre o tampo de vidro de uma grande mesa. Procurava dispô-las em ordem, para que pudesse ler. Eram narrativas com trechos entrecortados, pedaços corroídos, aqui e acolá alguma frase legível, mas que fora do contexto, tornavam o resto incompreensível…
“São anotações, roteiros, originais de romances, contos, flagrantes importantes da época… ora, deve ter havido algum antepassado escritor na família”… a imaginação corria solta na mente daquela jovem de treze anos.
Finalmente, no meio de um dos calhamaços, consegue reunir uma sequência lógica de um dos textos e põe-se a ler avidamente…
…“E houve um tempo, num passado muito, muito distante, em que a vida transcorria de uma forma radicalmente diferente do modo como a vivemos hoje. As famílias viviam tradicionalmente em “casas”, quase todas com seus respectivos “quintais”, situadas em ruas e em bairros aprazíveis, onde as crianças podiam brincar livremente, criar bichos de estimação, principalmente gatos e cachorros, usufruir plenamente da infância que naquela época estendia-se até os doze ou treze anos…”
Em alguns trechos a deterioração era quase completa, mas Lívia tentava conectar a narrativa da melhor maneira possível…
…“Usavam suas habilidades manuais, sua criatividade para construir os próprios brinquedos… cito aqui alguns, que por certo, já apagaram de suas memórias: carrinho de rolimã, pipas, bolinhas de gude, bolas de futebol e vôlei. As festas tradicionais como “Natal” e “Ano Novo” eram aguardadas com ansiedade pelas crianças, pois eram os dias em que recebiam presentes. Era uma profusão de bicicletas, triciclos, bonecas e bolas.”
…”E uma das festas mais esperadas eram as “Juninas”, sempre na metade do ano, festejando os santos Antônio, João e Pedro. Dias de fogueiras, fogos de artifício, balões magníficos que subiam aos céus, dos mais variados tamanhos, formatos e cores, disputando espaço com as estrelas…”
Lívia segue recompondo a narrativa com aqueles pedaços corroídos. Pega a última folha, quase apagada pelo tempo, mas que identificava quem havia escrito aquilo.
… “Tive o privilégio de viver essa vida, que hoje só existe nas memórias de alguns de minha geração…”
Aquelas páginas que compunham o miolo do calhamaço, permaneceram em melhor estado permitindo a Lívia avançar naquela narrativa.
… “E neste dia seis de fevereiro de dois mil e sessenta e seis, resolvi escrever estas linhas, quando completo cento e vinte anos de existência, agradecendo muito aos avanços da ciência médica, que tornou isso comum nos dias de hoje…, mas não consigo deixar de sentir saudade daqueles tempos….mas tenho um segredo, que vou contar agora…pode parecer surreal…, mas eu ainda visito aqueles lugares em que vivi naquela época!”
Livia interrompe a leitura e começa a acreditar que tudo aquilo eram devaneios causados pela senilidade daquele antepassado seu, de quem nunca ouvira falar, mas a curiosidade a impele…
… “Como? Quando os serviços de teletransporte se tornaram públicos, com o progresso, tudo passou a ser feito através dele, como até hoje e acredito que será para sempre. Todos os deslocamentos foram sendo paulatinamente transferidos para ele, em detrimento de todos os outros meios de transporte, que se tornaram obsoletos e, finalmente abandonados.”
…. “Não mais do que vinte anos bastaram para que as cidades paralisassem, as ruas, avenidas, estradas fossem esquecidas, tudo ficou como que congelado no tempo. É possível que alguns renitentes ainda vagueiem por lá, mas é improvável, não teriam como sobreviver por longo tempo.”
… “E quando minha família e eu nos transferimos para este mundo moderno, deixei lá muito bem dissimulado, um portal, cuja chave de acesso, trouxe comigo. Assim, já voltei lá algumas vezes e pude contemplar novamente o espaço em que passei grande parte de minha vida…”
… “O tempo … voltar mais, tudo estará degradado…e perdi …interes…caixa…chave…ass. JR em fev/2066…”
Aqui, as folhas mais perto das últimas do calhamaço já apresentavam novamente o estrago que o tempo ocasionara. A narrativa entrecortada, trechos incompreensíveis, pedaços corroídos…
Agora, Lívia já não manuseava com tanto cuidado aquelas folhas, pegava tudo afoita, à procura da tal chave, mas sem sucesso.
Tudo era surreal para Lívia, algo difícil de acreditar. Existiria mesmo aquela chave?… funcionaria ainda?
E aquele modo de vida que descreveu, como seria possível uma vida assim… habilidades manuais, quintais, bichos de estimação, festas de Natal e ano novo, festas juninas, fogueira, balão, fogos e a infância então, brincar até os onze anos???… sua mente se enchera de dúvidas, nunca ouvira falar de balões e fogos de artifício.
“Eles precisam me explicar sobre isto. Afinal, foram eles, os nossos instrutores que nos mandaram vasculhar os arquivos de nossas famílias em busca de documentos antigos, imagens, qualquer coisa sobre os nossos antepassados para debater em sala de aula sobre os costumes antigos…, mas isto!!! O que achei é muito, muito mais antigo, nem meus pais sabiam de sua existência… ah! eles vão ter que me explicar direitinho, se é que não tiveram suas memórias apagadas também…”
Aquele trabalho de pesquisa que prometia ser tedioso para ela, assume importância primordial agora, pois sua curiosidade havia sido aguçada com aqueles documentos, para ela insólitos.
O que desejava agora era pesquisar tudo sobre o passado de sua família e confirmar se poderia ser mesmo possível ter existido um mundo, uma sociedade com costumes tão diferentes como naquela narrativa…
Por um instante, invejou as crianças citadas na história.
…”Nossa!! elas ainda brincavam com a minha idade…seria mesmo verdade isso?…e eu, com meus treze anos, preparando-me já para ingressar na Academia de Formação Superior, onde ainda este ano, começarei a ser instruída e treinada para o que sempre desejei, ser cientista espacial e trabalhar no espaço, na terraformação de Planetas…esse desejo meu é tão forte que acho que isso vem dos meus antepassados…”
Distraída que estava em seus pensamentos, nem nota a aproximação de Juno, o androide que servia de mordomo e faz tudo em sua casa.
— Senhorita Lívia, deve preparar-se para a academia, e vim avisá-la de que Júlia acabou de chegar pelo portal e está aguardando para irem juntas. Deseja alguma coisa?
Ela faz um sinal de acatamento e o dispensa, quando vê a aproximação de seu pai.
— Que velharia, Lívia, onde desencavou tudo isso?
— Pai, descobri um tesouro enterrado no fundo do nosso “sótão”…brinca.
— Estava tão escondido, soterrado debaixo de tantos objetos, pastas, caixas de transporte de coisas, parecendo que foi esquecido lá.
— Deve ter sido trazido, ou melhor, teletransportado junto com outros objetos quando nos transferimos para esta Colônia.
— É um achado, pai, Tem informações de nossos antepassados mais antigos…isto deve ter pelo menos cento e oitenta e oito anos!!!…e tem mais, cita uma chave misteriosa, que não consegui encontrar na caixa…
A euforia de Lívia desperta também a curiosidade de Arthur, que se senta e começa a folhear e ler aquelas folhas.
— Tome cuidado, pai, Vou preservar todo esse material. Agora preciso fotografar tudo para levar à Academia, onde procurarei por respostas sobre tudo que li aqui.
As duas jovens transpõem o portal que as coloca diretamente no grande pátio da Academia.
— Veja ali, Júlia, tem duas poltronas vagas. Vamos esperar lá o chamado para nossas aulas, tenho que lhe mostrar uma coisa…
Lívia coloca a amiga a par de sua descoberta.
— Nossa!! não pode ser Lívia, não acredito que possa ter existido de verdade um mundo assim… deve ser uma fábula… sei lá… nunca ouvi ninguém, nenhum parente, nem meus pais falarem sobre algo parecido com isso…
— Eu também jamais ouvi ninguém comentar sobre um passado tão remoto…, mas isto tudo aqui me parece bem real e até prova em contrário vou considerar verdadeiro. Deve existir alguma documentação, relatos, seja o que for, que possa comprovar se foi possível mesmo ter existido um mundo assim.
— Duvido muito, Lívia. Quando muito, devem existir históricos que remontam no máximo aos últimos cem ou cento e cinquenta anos. Lembra-se do que nos ensinam nas aulas de história?…antes disso, o que existiu foram os anos negros das dezenas de pandemias que dizimaram bilhões de seres humanos no Planeta.
— Sim, Julia, sabemos que o sofrimento causado pelas várias pandemias foi modificando o comportamento das sociedades sobreviventes que foram como que criando mecanismos para apagar da memória o sofrimento vivido, até chegar-se ao final do século passado e meados deste século XXIII, quando aconteceu aquela tal “paranoia coletiva” onde tudo que lembrasse ou pertencesse ao período de contaminação foi sumariamente “queimado”, a título de saneamento para evitar-se novas propagações.
— Mas também nos ensinaram que algo de positivo resultou de tudo aquilo. Após a passagem de cada pandemia, havia uma considerável recuperação da natureza, com ecossistemas se recompondo, rios e mares se reciclando e refazendo seus biomas…
O Planeta periodicamente parecia ajustar o número de seus `’tripulantes”, adequando sua quantidade à sua capacidade de abrigar e alimentar todos. Cantões onde grassava a miséria e a fome endêmicas, voltaram a prosperar e oferecer novas oportunidades aos sobreviventes.
Um surto consistente de progresso e desenvolvimento sempre ocorreu após o término de cada grande pandemia. A ciência deu passos gigantescos nos dois últimos séculos, proporcionando descobertas e avanços inimagináveis como a exploração do espaço, desenvolvimento de androides e colonização de planetas.
O mestre Gilbert era um dos decanos da Academia e era o titular da cadeira de história, auxiliado por três outros professores assistentes mais jovens. Havia conquistado sua cátedra aos dezoito anos e já estava completando trinta e dois anos na mesma instituição.
Estava em pé, próximo à primeira fileira de alunos, com os olhos fixos no grande telão do anfiteatro, lendo a narrativa que Lívia havia projetado. Volta-se agora para os alunos, pensando em como responder às inúmeras perguntas com que Lívia o havia bombardeado.
— É um importante documento histórico o que vemos ali…e aponta para o telão.
— Pelo que vimos, foi escrito em dois mil e sessenta e seis, mas o autor dessa narrativa estava descrevendo imagens que ocorreram muito tempo antes. Portanto, os fatos que ele cita, devem datar de pelo menos duzentos e vinte anos…e aí já vai ficando mais evidente que tudo aquilo pode tratar-se de uma simples fábula, talvez ele seja um autor de histórias de ficção científica…
— Se tivéssemos acesso ao restante da narrativa, poderíamos confirmar isso, Lívia…o anfiteatro ouvia em silêncio.
— Estou tentando recuperar tudo, professor, estão em muito mau estado, não sei se vou conseguir.
— Recomendo que fotografe tudo, Lívia, pois são objetos antigos que perduraram por várias pandemias e, quando nosso Setor de Preservação Ecológica souber deles, vai querer confiscá-los e destruí-los com certeza, temendo alguma contaminação que possa ter trazido com eles…
“Sim, vão querer apagar essas memórias também…” pensa.
— Mas, professor, se o senhor está considerando isto como “ficção científica”, o que são então esses autores que escrevem hoje sobre um futuro imaginário, como a “independência das colônias de Marte”, colonização dos planetas na órbita de Alpha Centauri etc.?
— Ora, Lívia, esses senhores nada mais são do que profetas do óbvio, pois criam imagens e falam de situações para as quais não é necessário um grande esforço de imaginação, pois já é sabido que as nossas colônias em Marte estão atingindo o ápice de sua população e a terraformação do planeta está em vias de terminar. Portanto, é óbvio presumir-se que logo, logo, vão pensar na independência do planeta em relação à Terra. Quanto aos planetas na órbita da estrela Alpha Centauri, nossos cientistas já enviaram os primeiros colonos que deverão se fixar permanentemente no quarto planeta da sua zona habitável e, já se sabe que há outros…
— Então, professor, o senhor não acredita que possa ter existido uma sociedade como a descrita ali?…Lívia aponta o dedo para o telão.
— Em todos estes anos de magistério aqui, Lívia, tive acesso a incontáveis documentos citando os modos de vida dos antigos, mas no máximo remontavam à metade do século passado…que faziam referência às grandes avenidas, viadutos e auto estradas…que se tornaram obsoletas e abandonadas e nunca mais foram utilizadas, mas nunca vi ou ouvi nada semelhante a fatos como esses citados nessa narrativa, que como outros de natureza insólita são classificados como mitos, fábulas, ficção, enfim, teorias que dependem de serem confirmadas…
Dirigindo-se agora à toda classe que se encontrava atenta e silenciosa…
— Vejam as inconsistências e fantasias que são citadas ali…
— ” Habilidades Manuais”…pra quê? se temos nossas máquinas que nos fazem de tudo?…
— ”Quintais”…outra fantasia de que não necessitamos, se temos portais que nos levam a qualquer parque que desejarmos, melhor do que qualquer “quintal”…
— ”Bichos de estimação”…uma aberração…podemos criar artificialmente qualquer animal, limpo, livre de doenças e que não nos causam nenhum custo…
— ”Natal, Ano Novo”…nossa!!, nossos tataravós já diziam que era tudo puro comércio, uma exploração da ingenuidade das massas…
— O que falar então da “infância até os treze anos?”…Esse é o maior exemplo de que só pode ser ficção mesmo essa narrativa, pois é inconcebível que se perdesse tantos anos, atrasando o desenvolvimento cerebral das crianças. Imaginem-se vocês brincando naqueles “quintais” e “ruas” que ele cita, sujeitos a todas as contaminações possíveis e imaginárias…
O professor encerra teatralmente sua arenga e vai dirigindo-se para sua mesa, mas ainda ouve o comentário de Lívia…
— Ainda não estou convencida, tenho muitas dúvidas, mas primeiro vou pesquisar mais naqueles documentos…
“E tenho que encontrar aquela chave”... pensa.
Todos sabemos que a Humanidade possui uma “memória coletiva”, mas, como acontece com qualquer cérebro, nem tudo fica gravado na memória para sempre. Vivemos, aprendemos, adquirimos experiências e muitas dessas memórias, principalmente aquelas de longo prazo que, sem uso, vão sendo deletadas paulatinamente.
Prova disso é que a maioria de nós sequer se lembra do nome completo de nossos quatro avós, de nossos oito bisavós e o que dizer então dos nossos dezesseis tataravós…
Quem saberá quantos mundos diferentes, quantos conhecimentos importantes, quantos fatos extraordinários foram sepultados para sempre nessas “Memórias Apagadas”?
FIM