O Alemão tinha esse apelido desde pequeno, não à toa. Moleque de pele alva, olhos azuis, cabelo ruivo… era um lídimo representante dos “germanos”. A alcunha caiu-lhe como uma luva e nunca mais se livrou dele.
Houve um tempo no passado, em que era muito raro um moleque conservar o seu nome real. Muitas vezes, quando se citava o seu nome verdadeiro, ninguém sabia quem era, mas, bastava dizer o apelido e, como mágica, todos lembravam imediatamente.
E os apelidos aplicados pela molecada eram como cola, adesivos que incorporavam e se tornavam inesquecíveis, porque retratavam alguma particularidade mais saliente do apelidado.
Um deles, com dois dentes maiores na frente, virou o “castor” e outro, com falha em dois deles, o “dentinho”. O mais alto da turma era o “montanha” e o mais forte, o “morsa”. E tinha um, bem habilidoso com as mãos, o “mãozinha”, agora é só imaginar qual era a particularidade do “cabelo”, do “manco”, “cabeça”, “sovaco”, “grilo”, e assim vai…
Molecada implacável, batizavam mais que o padre na paróquia da Vila.
Mas, voltando ao Alemão, sua família para cá viera com a imigração germânica e, como era de hábito naqueles tempos passados, emigravam para o sul do nosso país, em busca de um clima mais aproximado do seu país natal.
O principal ramo de sua família criou raízes no Rio Grande do Sul, menos o seu avô, ferramenteiro dos bons, acabou se colocando numa boa empresa e resolveu fincar as suas raízes por aqui mesmo. Emigrara já casado, e sua mulher já trazia o pai do Alemão em gestação.
Como sempre acontece em situações assim, quando os membros de uma família se apartam, os laços vão se espaceando, começando pelas cartas que vão se intervalando mais, depois as visitas, já raras devido à distância, acabam por apartar-se por completo, arrastando-se até por anos, sem um contato entre eles.
Com a família dele não foi diferente. Mas, certo dia, uma carta do Rio Grande do Sul, alegrou deveras o pai do Alemão.
— Vejam, vejam, o meu primo Ferdinand virá nos visitar e trará a família toda para nos conhecer… temos que nos preparar, Teófile, ele vem com a mulher e seus quatro filhos. Deixaremos o quarto das crianças para eles, os meninos dormirão com a gente.
Tinham se visto uma única vez, há mais de vinte anos, quando vieram para o velório do avô do Alemão. Soube depois que casou, constituiu família e não se viam desde então.
A alegria na casa do Alemão era perceptível, com os preparativos da recepção. Morando na mesma rua, nossa turma era assídua frequentadora da sua casa, principalmente agora, quando sua mãe, que chamávamos respeitosamente de “dona Tafília” nos brindava com alguns petiscos que ia produzindo para os futuros visitantes.
Beto, Carlão, Japa, Henrique… não paravam de confabular imaginando como seriam aqueles primos distantes do Alemão, tão esperados. Já sabiam que um deles, o mais velho, tinha a mesma idade dele, treze anos, como, aliás, era a média da idade da nossa turma.
Certo dia, a azáfama na casa do Alemão era total. Quando fomos chamar nosso amigo para as brincadeiras diárias, notamos que a “dona Tafília” enfeitava um lindo bolo sobre a mesa e, vendo nossos olhares lânguidos sobre ele…
— Ah, vão brincar, isto aqui é para comerem só depois que eles chegarem…
Então, deduzimos que a chegada dos parentes era iminente, o que, realmente ocorreu, horas depois, naquele sábado.
Na época, não era tão comum o trânsito de automóveis em nossa rua, por isso quando aquele “Ford Mercury” negro com o luminoso amarelo no teto surgiu, rodando devagarinho, procurando o número da casa, já sabíamos que eram eles e logo nos plantamos todos, colados ao muro da frente da casa do Alemão, olhos arregalados de curiosidade.
Quando o carro estacionou no portão, o ronco do motor, que não era baixo, alertou os pais do Alemão, que saíram logo, com os outros filhos menores, fazendo a maior algazarra.
A confraternização foi longa, com os abraços e beijos de praxe… os elogios costumeiros… “puxa que crianças lindas”… “mas, como este menino está crescido, já é um rapazinho”.
Seguiu-se a retirada de uma bagagem imensa, com malas de couro afiveladas, caixas e sacos de viagem. Enfim, entraram todos e pouco depois o Alemão retorna, pois sabia que estaríamos ali, no muro, à espera.
Estávamos todos estáticos, embasbacados com o que tínhamos presenciado…
— De onde vieram esses?… que roupas mais estranhas…
— E aquelas botas do homem, tinha até aquilo que vemos nos filmes de bang-bang… esporas, né?
— Viram o lenço vermelho?… pra quê que serve aquilo?
— E o garoto… parecia uma miniatura do pai, vestido do mesmo jeito…
— Ô, Alemão, de onde eles vieram?… são de outro país?… acho que devem ser, pois não entendi nada do que disseram… um palavreado muito esquisito…
— Meu pai disse que são do Rio Grande do Sul, têm costumes diferentes, mas são tão brasileiros quanto nós. Só estranhei o José Getúlio, que não falou nada até agora…
— É aquele moleque?
— Sim, ele mesmo, todo fantasiado daquele jeito…
Foi só dizer isso e o moleque aparece no portão, com ares de querer fazer amizade e anuncia para o Alemão…
— Meu pai mandou parar a charla e o ditério e pediu pra tu e tua trempa botarem meia-rédea na faixa e irem pegar um cacete bem grande.
Aquilo foi demais. Alemão teve que conter o Carlão e o Beto que avançavam para dar uns sopapos naquele desaforado, que vendo essa reação inesperada, saiu em desabalada carreira para dentro de casa.
— Espera aí, Carlão, vou perguntar para o meu pai o que significa isso. Se for alguma ofensa, depois pegamos ele aqui na rua e lhe damos uma lição…
Minutos, que pareceram horas depois, o Alemão sai rindo de casa.
— Nada disso, turma, o que ele quis dizer é para irmos com alguma pressa buscar um filão de pão… só isso.
Ouvindo as gargalhadas na varanda, observam aquela figura toda paramentada, com bota de cano, camisa vermelha, chapéu de aba larga e segurando uma cuia, de onde chupava algo de dentro, através de um tubo de metal e o moleque do lado, igualzinho ao pai, segurando uma cuiazinha menor…
Não deu outra, o moleque logo foi batizado pela turma…
— Esse “marciano” vai ter que respeitar a gente, ou vai entrar no samba logo, logo.
Passaram os anos, a infância da turma acabou, viveram os sonhos da juventude, casaram, tiveram filhos, mas continuaram com a amizade de sempre e, hoje, se reúnem regularmente no “Boteco do Jacinto”, o último integrante da turma, depois da morte do Ítalo.
E, na sexta-feira, dia de reunião da turma, eis que o Alemão chega, sacudindo uma carta nas mãos…
— Não vão acreditar, meus amigos, quem adivinhar de quem é esta carta, ganha uma rodada de chope e uma porção de bolinhos de bacalhau…
Após várias suposições e palpites…
— Pô, Alemão, como poderemos adivinhar uma coisa dessas?… só se você nos der alguma dica…
— Tudo bem, se eu der a dica, fica cancelado o prêmio que propus…
Não era para menos, aquela carta vinha de um personagem que há mais de trinta anos não viam. Estava lá, guardado nas memórias da infância deles e, não eram memórias tão boas assim…
— Pessoal, a dica é… lenço vermelho e bota de cano…
Nunca esqueceriam aquela figura que marcou aqueles dias da infância. Só estava soterrada pelo tempo, como aquelas coisas que costumamos esquecer, quando pensamos nunca mais ver de novo.
A reação foi em uníssono…
— O Marciano?????
— Sim, ele mesmo, depois de tantos anos, avisa que vem para cá a serviço e quer dar uma passadinha em casa e vai trazer, nas palavras dele… sua prenda e seus guris…
— Portanto, meus caros, preparem-se, pois não vou aguentar o Marciano sozinho não. Vou trazê-lo aqui e vocês vão ter que recebê-lo também…
Jacinto, que não o conhecia, mas ouviu todos os relatos sobre aquela figura, logo começou a conjecturar algo em sua mente…
— Humm!!!… acho que tenho uma missão muito especial para você, Carlão…
Não se precisa dizer, que o resto daquela noite foi devotada inteiramente para as tratativas da recepção ao “Marciano”…