A grande árvore do pátio começava a perder suas folhas. O outono havia chegado com seu ar mais seco e as temperaturas mais amenas. O céu negro de Lua nova, apinhado de estrelas e uma brisa leve e fresca, tornavam aquela noite bastante convidativa para um encontro com os amigos, uma ida aos bares, lanchonetes e restaurantes.
E o boteco do Jacinto estava movimentado naquela noite. O ambiente animado e aconchegante propiciava aos seus frequentadores, momentos de descontração e intimidade.
Aromas variados enchiam o ambiente, com a fragrância das flores, nos vasos estrategicamente dispostos por Genoveva, que pareciam disputar espaço com o cheiro característico das suas iguarias tão apreciadas.
Jacinto mantinha-se atrás do balcão, presenciando a lida dos garçons e garçonetes, coordenados pela sua filha Genoveva, sempre circulando pelo salão. Postava-se num dos cantos do comprido balcão, onde costumava atender algum cliente especial que o procurava em busca de uma boa conversa.
Era bom fisionomista, conhecia o semblante da maioria de seus clientes. Mas jurou nunca ter visto aquela mulher, de ares aristocráticos, gestual elegante, acompanhada por um homem mais novo. Pensou já ter visto aquele senhor, porém não conseguia lembrar quando… e notou que algumas vezes ela o procurou com o olhar.
Genoveva prontamente a identificou e a acompanhou até uma mesa central, de onde era possível apreciar a maior parte do salão. A atenção de Jacinto já era total, mas sua distinção e reserva jamais permitiriam ostentá-la. Deduziu que deveria estar fazendo perguntas para Genoveva, que por fim, designou uma excelente garçonete para atendê-la.
Reparou que pediu um drink requintado e um chope para o acompanhante, ao fim do qual, dispensou-o. Continuava admirando os detalhes da decoração e, vez ou outra, o olhava de soslaio e Jacinto dissimulava.
Alguns minutos depois, o homem retornou com um pequeno pacotinho, entregou-lhe e tornou a retirar-se. Era mesmo uma mulher fina, que exalava refinamento, sofisticação e delicadeza pelos poros. Degustava com requinte o seu drink, enquanto contemplava o ambiente.
A um dado momento, acenou para Genoveva, que se aproximou e, a seu pedido, sentou-se ao seu lado. O fastígio que ela exercia era inegável e a curiosidade de Jacinto atinge a plenitude. Quem é essa mulher?… o que fazia ali?…
Pouco depois, Genoveva levanta-se, estende a mão e a cumprimenta efusivamente, afastando-se em seguida. Caminha em direção a Jacinto, visivelmente emocionada.
— Pai, acabo de conhecer uma pessoa extraordinária. Não lhe direi quem é, pois, vai conhecê-la. Ela pede que, assim que puder, vá até sua mesa, porque tem uma mensagem para transmitir-lhe.
Jacinto termina rapidamente o que restava de sua dose do whisky favorito e, procurando disfarçar a extrema ansiedade que o acometia naquele momento, caminha em direção àquela mulher que lhe atraíra a atenção desde o momento em que chegou ali. Procura manter uma naturalidade que já lhe faltava…
— Boa noite, senhora…
— Boa noite, senhor Jacinto… sua filha Genoveva é muito gentil. Conversei longamente com ela e, embora, desde que entrei aqui, havia deduzido que era o senhor Jacinto, procurei me certificar primeiro, antes de chamá-lo… dispõe de alguns minutos… pode sentar-se, por favor?
Faz um gesto gracioso com a palma da mão estendida.
Embora Jacinto pensasse que poderia passar horas ali, conversando com ela, como era hábito fazer com alguns clientes, procura não demonstrar tanta animação.
— Oh, claro, senhora, meus filhos já cuidam de tudo por aqui. Mas do que se trata?
— Não nos conhecemos ainda, senhor Jacinto, devo apresentar-me corretamente. Meu nome é Heloísa Sobral Penteado Ramalho, esposa de um ex-cliente seu…
O som daquele nome provoca uma sentida emoção em Jacinto.
“Sim, é ela, a esposa do doutor Lúcio”…
Ela nota aquela autêntica reação dele e se emociona também, deixando escapar uma furtiva lágrima pelo canto dos olhos.
— Ainda estamos estremecidos com a morte brutal do meu marido, senhor Jacinto… ele era um homem bom, muito acima do comum e não merecia um final desses…
— Não mantivemos uma amizade estreita, senhora, mas tinha por ele um sentimento de profundo respeito e consideração. Posso dizer que o relacionamento que tínhamos era de um nível que muito raramente encontrei por aqui.
— Esse respeito era mútuo, senhor Jacinto… e é a razão desta minha visita. Nós conversávamos muito e ele relatou-me algumas passagens que fez por aqui.
— Uma delas foi quando ele decidiu estender o horário do seu trabalho e, ao sair mais tarde, resolveu entrar pela primeira vez aqui. Disse que se surpreendeu com o seu ambiente, sentiu-se como no “american bar” que costumávamos frequentar em Nova York e hoje, vi que tinha razão.
— Mas, naquele dia, estávamos brigados, pois eu não concordava com aquela sua decisão de trabalhar até mais tarde, ele não precisava mais disso, porém, disse que era algo que acrescentaria no seu novo livro.
— Ele contou estar remoendo o que eu havia escrito em dois bilhetinhos, discordando dele e avisando que iria passar um tempo na América.
— Aí foi quando o senhor se aproximou dele no balcão, ofereceu-lhe o seu melhor whisky, que por coincidência era também o seu predileto e permaneceram os dois sem proferir nenhuma palavra até o momento em que resolveu ir embora. Isso foi marcante para ele, serviu como um marcador da sua personalidade, que passou a respeitar. E o senhor sabe que ele era um brilhante psicanalista e um talentoso psiquiatra. Entendia de pessoas, como ninguém.
— Comentou também que havia conversado muito com sua filha Genoveva, que estava prestes a se formar também na mesma área que sempre foi a paixão dele. Até pensava seriamente em lhe propor um trabalho ao seu lado, o que acrescentaria muito na formação profissional e acadêmica dela.
Cada vez mais tocado pelas palavras dela, Jacinto ia rememorando aqueles fatos. Lembrou-se do elogio que ele havia feito ao seu boteco, comparando-o ao “american-bar” de NY…
— Certa vez, senhor Jacinto, ele pediu-me que ao retornar, trouxesse um mimo, que havia recebido desse tal estabelecimento que frequentávamos, pois iria mostrá-lo e, talvez, dá-lo para o senhor.
Dizendo isso, ela desembrulha o pacotinho diante dela e o entrega para Jacinto.
Era uma delicada plaquinha de prata…
“New York”
“September, 2010”
“To mr. Lúcio Penteado Ramalho”
“VIP client of this house”
— Gostaria que ficasse com isso, senhor Jacinto, sei que seria a sua vontade…
Jacinto já não conseguia esconder sua emoção.
— Será uma honra, dona Heloísa, ocupará um lugar de destaque e servirá para nos lembrar sempre do homem digno que foi e também para jamais deixarmos de buscar justiça para quem cometeu esse ato bárbaro…
— Talvez, não saiba, senhora, que temos um amigo nosso que é um policial competente, e, embora não seja deste distrito onde ocorreu, está colaborando muito com eles e, posso dizer, está empenhado em solucionar esse crime bárbaro…
— Esse também é o meu desejo, senhor Jacinto. Foi um prazer conhecê-lo e também ao seu famoso boteco.
Levanta-se e estende a mão num gesto gracioso. Depois, abre uma elegante bolsa e retira um cartão de visita e entrega-o a Jacinto.
— Já prestei meu depoimento, senhor Jacinto, mas, se precisarem de qualquer informação que julgarem necessária, estou inteiramente à disposição.
— Se quiser, posso mandar levá-la até em casa, dona Heloisa…
— Obrigada, estou com o nosso motorista aguardando lá fora…
Jacinto, então, recorda-se daquele homem. Uma única vez ele havia entrado no boteco para acompanhar o doutor Lúcio até o carro. Foi quando os dois esvaziaram aquele litro do “Royal Salute” de vinte e hum anos.