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Futuro previsível

Futuro Previsível

Desde as primeiras horas da manhã, um chuvisco fino e intermitente molhava as ruas e calçadas próximas daquele recanto aprazível, que ainda teimava em manter certas tradições, conservadas desde gerações anteriores.

Embora sua quinta geração de proprietários procurassem manter sempre o aspecto pitoresco e original do lugar, foi inevitável renderem-se às modernidades e às alternativas da inteligência artificial e da robótica proporcionadas pelo mundo moderno.

Toda a sua edificação possuía um campo de força, à semelhança dos que protegem as naves espaciais, que a protegia das intempéries, do sol inclemente e até de possíveis colisões de qualquer tipo. Uma das extensões era o pátio, destinado aos veículos de toda natureza, inclusive os voadores. 

Num cantinho esquecido do grande pátio, numa placa de bronze, azinabrada pelo tempo, ainda se consegue distinguir uma data e algumas palavras… 06/02/2110…. Comemoração dos cem anos do “Boteco do Jacinto”.

Passarelas deslizantes transportavam as pessoas até a entrada principal, quase que sem necessidade de dar um único passo. No seu interior, os bancos, cadeiras e poltronas, eram todos magnéticos, bastando sentar-se para que se elevassem do chão e flutuassem a alguns centímetros do chão. 

Um esquadrão de androides inteligentes prestam-se ao trabalho de maitres e garçons com absoluta perfeição. Esse tipo de androides são amplamente empregados por toda a sociedade para executar todo tipo de serviço, principalmente aqueles que o ser humano não deseja, ou não tem mais aptidão para fazer.

Ledo engano, julgarem que a IA evoluiu somente até esse nível de robôs executores de serviços. Esses, representam apenas uma sub-espécie absolutamente necessária, dada a crescente inaptidão das pessoas com habilidades manuais.

 Hoje, toda sorte de serviços é executado por máquinas ou robôs. Deixaram de existir os pedreiros, os empreiteiros e marceneiros, os carpinteiros, os mecânicos, eletricistas, pilotos e navegadores, motoristas de quaisquer veículos. 

As mãos dos cirurgiões, sujeitas às falhas humanas, foram substituídas pela precisão dos robôs, mais confiáveis. 

Todo o ordenamento jurídico foi transferido para a IA, que é capaz de distinguir as nuances jurídicas de quaisquer países do mundo e capacitada para dosificar as penas e castigos, multas e penalidades, sem os erros e a corrupção humanos de antigamente.

Contudo, uma nova estirpe de androides se sobrepõem à última geração. Não eram mais compostos de nenhuma parte mecânica, mas sim de ossos, tecidos, órgãos, pele…  sintéticos, mas em nada inferior aos similares humanos. Entretanto, a maior transformação se processou no seu cérebro, quando a ciência e a tecnologia conseguiram produzi-lo com a maior rede neural até então. Igual, ou talvez, até maior que a dos seres humanos.

O desenvolvimento vertiginoso das pesquisas em torno das células-tronco, criou uma nova vertente da ciência, a dos “organoides”. Era possível, agora, reproduzir qualquer órgão humano, com absoluta perfeição. Porque, então,  não dotá-los também, de órgãos reprodutores à semelhança dos nossos?

Aconteceu com eles, consequentemente, o mesmo que nos primórdios da Humanidade ocorreu com o homem primitivo, que até aquele instante, vivia instintivamente, como os animais.

Bastou aquele “clique”, que nunca soubemos se foi “divino” ou aleatório, para que imediatamente adquirissem a consciência de que existiam, sim, eram seres pensantes. A partir desse instante, iniciou sua evolução até o sapiens.

Hoje, embora enfrentando a natural resistência da sociedade, os androides ocupam seu papel e o desempenham com grandiosidade, procurando integrar sua nova espécie à dos humanos, miscigenando-se e até, casando-se….

Essa parte da narrativa foi o estopim para a turma toda iniciar uma algazarra incontrolável…

— Tenha dó, Japa, a história é legal, mas você exagerou um pouco… gritou Henrique.

— “Consciência” ?…. essa não, Japa, eles jamais obterão uma como a nossa… diz Beto.

— E ter filhos, então, é demais para engolir, Japa. Se acontecesse isso, seria o fim da nossa raça… alerta Jacinto.

— Depois disso, só tomando um chope mesmo… propõe o Alemão.

O Japa mantinha-se impassível, gostava de vê-los assim, instigados, empolgados com alguma ideia sua.

— Mas, calma pessoal, são apenas conjecturas, ideias que jogamos como sementes num solo fértil. É assim que nascem as histórias… todas elas…

— Poxa, Japa, mas casar androides com humanos, é demais…

— Carlão, se você escutou direito, eles já nem poderiam mais ser considerados androides, evoluíram tanto que já possuíam potencial para serem considerados como uma nova espécie de humanos, até melhorados…

— Ah, Ah, Ah, vou tomar mais um chope por conta disso. 

Jacinto toma a palavra.

— Bom, Beto, o que nós estamos interessados mesmo, agora, é saber notícias daquela investigação que já está se arrastando por três meses. Já surgiu algum suspeito pela morte do médico?

Notando que aquela pergunta desperta o interesse de todos em volta, Beto se dirige aos amigos.

— Sempre que posso, pessoal, vou até o distrito do Jardim para saber mais e colaborar no que é possível. O que sei é que tomaram diversos depoimentos das pessoas mais próximas da vítima. Da esposa, que regressou dos Estados Unidos, do motorista particular dele, da sua assistente na clínica, até de empregados domésticos de sua casa. 

— A esposa relatou que conversavam bastante por telefone e que já estavam reconciliados, pois ele a convenceu de que precisava estender mesmo o seu horário para pesquisa de um caso que faria parte do livro no qual estava trabalhando. Quando ela disse que retornaria em breve, ele havia prometido lhe dar um presente valioso, que ela já suspeitava do que se tratava.

— O Jardim disse que não encontrou nada de valioso no consultório e resolveu mandar levantar toda a movimentação financeira do doutor nos últimos dias. A assistente disse que não sabia de nada a respeito.

— Outra linha de investigação é aquela imagem do sistema de segurança do prédio, muito ruim naquele horário, que mostra um homem saindo e dirigindo-se à calçada. Foi a última pessoa a sair do prédio e as suas características físicas, analisadas pelo perito, não batem com a descrição do assassino, dada pela assistente da clínica. 

— Enfim, pessoal, está nesse pé. Acredito que o Jardim logo encontrará uma linha de apuração que lhe desvendará esse crime. Falta pouco…

— Isso tudo é sempre muito demorado, não é, Beto?

— Sim, Henrique, é porque se procura sempre agregar o maior número de evidências e depois parte-se para comprová-las todas com uma quantidade de provas irrefutáveis, que possam municiar o sistema jurídico depois.

Carlão aproveita para comentar sarcástico…

— Ah, que pena, se estivéssemos lá naquele ano em que acontece a história do Japa, as investigações todas seriam a cargo daqueles androides e garanto que esse crime já estaria solucionado, não é pessoal…

— Ah,Ah,Ah, ainda estamos longe disso… mas não deixa de ser um futuro previsível sim… por enquanto, acho que devemos nos preocupar é com esses bolinhos de bacalhau e essas canecas de chope geladinhas ai…

E as conversas prosseguem animadas naquela noite do boteco.



FIM

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