Se havia um sentimento dominando sua mente naquele instante, era de gratidão e reconhecimento pelo trabalho incansável daquele homem que ele olhava, através das vidraças do salão.
O chuvisco fino que molhou o dia inteiro até a tardinha, começou a engrossar com a chegada da noite e agora era uma chuva persistente, que não diminuía de volume já havia algum tempo.
Com um grande guarda-chuva, feito uma barraca, desdobrava-se no pátio, conduzindo os clientes, ora para os seus carros, ora deles para a entrada principal do boteco.
Era uma sexta-feira, dia costumeiro da reunião semanal com seus amigos, mas o mau tempo e o trânsito ruim eram imprevisíveis, talvez nem viessem… pensa Jacinto, e já ia se afastando das vidraças, quando ouve aquela buzina inconfundível do veículo do Carlão acessando a entrada do estacionamento.
Era um ritual que nunca deixava de fazer só para provocar Jesus. Começava a andar em zigue-zague até que ele, à guisa daqueles sinalizadores dos aeroportos, começava a gesticular afetadamente indicando os procedimentos que então, Carlão obedecia fielmente, até chegar à indicação do local exato onde deveria colocar o veículo.
Mas, com a chuva constante, Jesus deixou o grande guarda-chuva sob a árvore do estacionamento e só com sua capa amarela, fazia os gestos característicos para o Carlão.
Das vidraças, Jacinto contemplava aquele espetáculo à parte. Finalmente, o veículo imobiliza-se na vaga determinada por Jesus.
— Ué, veio lotado hoje, seu Carlão?…
— Resolvemos vir juntos, devido a esse tempo, Jesus, só falta o Beto, que virá mais tarde.
Jesus acomoda como pode os quatro amigos sob o guarda-chuva e os leva até a cobertura da entrada e vai rápido atender outros clientes que aguardavam na entrada do estacionamento.
A chuva desce agora em rajadas fortes e inclinadas, atingindo toda a parte frontal da construção.
O crepitar da chuva batendo contra as vidraças e o clima ameno do ambiente, propiciava um momento de intenso aconchego no interior do boteco. Jacinto continuava de pé, diante das vidraças, agora acompanhado de seus quatro amigos, contemplando o vai-e-vem de Jesus.
— Ele é incansável, hein, Jacinto?
— É, sim, Carlão, nós admiramos muito a sua força de vontade…
— E eu gosto muito dele, Jacinto, por isso faço sempre questão de brincar e provocá-lo.
O aguaceiro aumentava de intensidade, agora acompanhado por ventos mais fortes que sacudiam as folhagens da grande árvore do estacionamento. Os ralos de escoamento absorviam a água no limite de suas capacidades.
Jacinto solicita a um dos garçons que vá avisar Jesus para recolher-se e esperar que o tempo melhore, mesmo porque, não havia trânsito de veículos no estacionamento e quem estava para sair, não se aventuraria a enfrentar o temporal.
— Escutem… o Beto mandou mensagem dizendo que ficou ilhado em uma das ruas do centro. Tudo está parado ao seu redor, o trânsito não vai nem para frente, nem para trás e está receando que se a água continuar a subir, vai ter que abandonar o carro…
Alemão avisa, com o celular na mão…
— E estou lendo também notícias de alagamentos em diversas regiões e um verdadeiro dilúvio em zonas litorâneas, com desmoronamentos provocando verdadeiras avalanches solapando tudo.
— Nossa!, mas o que está acontecendo com a nossa natureza, pessoal…
— Eu entendo que a natureza sempre teve eventos naturais e desastrosos assim. Furacões, maremotos, erupções vulcânicas, inundações, incêndios nas matas, entre outros, tudo isso é consequência da dinâmica do nosso Planeta e fazem parte do funcionamento da natureza… pondera Henrique.
— E nós compreendemos isso, meu amigo, mas talvez o que o Alemão está querendo dizer é que ultimamente está havendo uma escalada significativa desses eventos catastróficos com o que não só concordo, como também acredito haver, sim, a mão do homem provocando tudo. É importante lembrar que a ação humana sempre teve impactos significativos na intensificação e na frequência desses desastres naturais… diz Japa.
— Escutem, estou lendo aqui que já há a confirmação de mortos nos desmoronamentos no litoral. A infraestrutura de algumas localidades está sendo destruída pela enxurrada de lama… é mais sério do que imaginamos… relata Alemão… e completa:
— E acredito, sim, que é a ação do homem que está piorando as condições climáticas do Planeta, com os desmatamentos, com a poluição do ar, da água e do solo, emissão de gases de efeito estufa que provocam o aquecimento global, o derretimento das geleiras e o aumento do nível do mar… querem mais?
O temporal não dava mostras de amenizar. A ventania provocava a queda de uma profusão de galhos e folhas da grande árvore do estacionamento que interrompiam o fluxo da água nos ralos de escoamento e isso já começava a elevar o seu nível até a meia altura dos pneus dos veículos.
— Veja, Jacinto, se continuar aumentando assim, logo atingirá a altura das portas…
— E não há o que fazer, Henrique, pois as ruas ao redor estão em piores condições…
Repentinamente, surge Jesus, com sua capa amarela e altas botas pretas com um grande vassourão a retirar as folhas dos ralos. Medida providencial que evitaria, temporariamente, o aumento do nível da água.
Aquela ação era presenciada não só pelos cinco amigos postados nas vidraças, mas também por inúmeros outros clientes do boteco que, surpreendidos pela piora do tempo, imaginavam como seria a volta para casa.
Perto de uma hora depois, o vento acalmou-se e a intensidade da chuva reduziu, começando então, um lento escoar das águas, através dos ralos. Jesus continuava a varrer as folhas, que agora não caiam mais, juntando-as numa grande pilha num dos cantos do estacionamento.
Logo que as ruas e avenidas do entorno voltaram a ficar transitáveis, uma boa quantidade de clientes, retidos no boteco, saíram de uma só vez e, no pátio, cercaram Jesus e o aplaudiram. Em seguida lhe entregam um volumoso envelope amarelo.
— Viram isso, pessoal?… esse homem fez por merecer e também eu, quando sair, vou agradecê-lo… diz Alemão.
— Isso mesmo, vamos fazer, nós quatro aqui, o mesmo que fizeram, pode nos fornecer o envelope, Jacinto?…
Meia hora depois já não havia quase nenhum vestígio daquela tempestade. A atmosfera abafada e até uma nesga de céu estrelado, demonstrava que acima daquelas nuvens escuras que avançavam lentamente em direção à serra, existia uma noite enluarada e cheia de estrelas.
Pouco a pouco o boteco retoma sua rotina.
— Eu acho, meus amigos, que eventos como esse se tornarão cada vez mais frequentes em nosso futuro. É só observarmos os noticiários para constatarmos que já há uma constância maior de tornados, nevascas, inundações, incêndios em matas, deslizamentos de encostas, em várias partes do Planeta…
— Também acho, Japa, os cientistas já alertam que as mudanças climáticas que nós estamos causando estão provocando o aumento da temperatura média da atmosfera e dos oceanos e isso está levando a uma maior evaporação da água das superfícies terrestres, causando a intensificação das tempestades e inundações… informa Henrique.
— Então, para que servem essas tais Conferências Mundiais do Clima e do Meio Ambiente que vemos todos os anos nos noticiários?… Jacinto parecia indignado…
— Acho melhor não nos metermos nesse assunto, pois só teremos frustração e indignação com a inércia e a falta de atitudes dessa gente… propõe Carlão.
— Mas, Carlão, é exatamente devido a atitudes como essa, de deixar para lá, aceitar que fique tudo nas mãos dos políticos, o desinteresse da humanidade em adotar medidas eficazes de respeito à ecologia, ao meio ambiente é que tudo parece estar caminhando para um final previsível de caos generalizado…
— Concordo com tudo isso, Japa, mas não vejo nenhuma mudança nesse panorama, mesmo a longo prazo…
Carlão obtém a concordância de todos na mesa.
— Exato, Carlão, e a responsabilidade por esse fim previsível somos nós mesmos, isto é, a sociedade em geral, que na sua grande maioria, principalmente nos países mais pobres, carece daquele bem mais precioso, necessário para mudar esse estado de coisas… a educação…
Alemão, o radical, tenta completar o pensamento de Henrique…
— E o pior é que essa situação atual tende a perpetuar-se, pois vejam o que está acontecendo com a próxima geração, aquela que vai suceder-nos. Salvo pouquíssimas exceções, completamente perdida em uma cultura vazia, hábitos nefastos, cultuando valores impróprios… e até os invertendo. Basta observar a crescente desagregação das famílias e a instituição do casamento, que é a base delas, tendendo a desaparecer…
Jacinto toma a palavra…
— Apesar de todo o seu radicalismo, Alemão, no fundo, você tem razão em algumas coisas, outras não. É certo que a grande massa do povo sem educação, é que polui os córregos, os rios, os mares, o ar, a terra. Todavia, os grandes contaminadores do nosso Planeta são as grandes corporações que despejam milhões de toneladas de poluentes na atmosfera, que queimam combustíveis fósseis que estão destruindo a camada de ozônio e aumentando a temperatura global. E acabar com isso não é do interesse desses países que todos os anos encenam essas “conferências do meio ambiente”, elaborando metas inatingíveis, que eles mesmos sabem que não vão cumprir.
Alemão continua…
— E vejam também o que está acontecendo com nossas crianças, adolescentes e jovens, o celeiro da próxima geração. Estamos, digo, a sociedade está criando, graças ao uso prolongado dos celulares, efeitos negativos na sua evolução. Estão perdendo a empatia, atrasos no desenvolvimento da fala e da linguagem, de vez que têm menos oportunidades de interagir com as pessoas e com outras crianças. O uso excessivo dos celulares geralmente leva a um estilo de vida sedentário, aumentando o risco de obesidade infantil, fator que leva para a vida adulta, com os consequentes problemas de saúde…
— Nisso, concordo com você, Alemão, mas acrescento que a nossa mídia, principalmente a TV, contribui enormemente para a maior degradação ainda dos nossos jovens com programas com violência excessiva, programas com conteúdo sexual, explícito ou sugestivo, que é certo, provocam comportamentos sexuais precoces ou indevidos. Programas com linguagens ofensivas, grosseiras ou insultuosas, que as fazem imitar esse comportamento. Como, por exemplo, essas novelas do horário nobre, que colocam em evidência apenas os maus costumes, como o engôdo, a traição, o adultério, a homossexualidade, a vigarice e o estelionato. Que autores são esses?.
Jacinto levanta-se da mesa e com alguns passos, posta-se diante das vidraças e observa a noite lá fora. A chuva havia cessado totalmente, mas o céu continuava carregado de nuvens escuras, mas agora, numa camada mais alta da atmosfera, se deslocavam velozes em direção ao interior, descobrindo intermitentemente, uma tímida meia-lua minguante.
Volta para a mesa quando vê a aproximação de Carmem.
— Boa noite, queridos, vejo que um dos cavaleiros da távola redonda não apareceu hoje…
— Sim, dona Carmem, o Beto enviou mensagem avisando que ficou preso numa enxurrada no centro da cidade.
Carlão observa:
— Já tentei uns três contatos com ele, mas parece que seu celular está desativado.
— Eu estava assistindo ao noticiário lá em cima e vi que algumas regiões da cidade foram mais castigadas pelo temporal e uma delas foi a região central. Houve alagamentos de bares, restaurantes, carros submersos e pessoas arrastadas pela correnteza em algumas ruas. Será que o Beto não precisa de ajuda?
Jacinto abraça a esposa com carinho…
— Tem razão, meu bem, estávamos tão distraídos aqui, que não notamos a demora do Beto. Não é normal ele não nos ter contactado ainda. Sabe, você é grande amiga da esposa dele, ligue para ela, quem sabe ele já está lá descansando…
Alguns minutos depois, Carmem volta…
— Ela pensava que o Beto estava aqui com vocês… não consegui tranquilizá-la, vai pegar o carro e vem para cá…
Aquilo soou como um toque de alerta para a turma. De pronto todos se levantam, discutindo as medidas que tomariam para procurar o amigo perdido.
— Vamos meus amigos, a noite está só começando!